“Os imigrantes”, de Horacio Quiroga (1912)

O uruguaio Horacio Quiroga viveu grande parte de sua vida em Misiones, província argentina que faz fronteira com Paraguai e Brasil. Para Figliolo, esta foi sua forma de deixar para trás fracassos enfrentados na zona urbana. Por exemplo, em Montevidéu, onde matou acidentalmente um amigo; e em Paris, onde viveu por alguns meses à míngua. 

Misiones detém certo protagonismo na literatura produzida por Quiroga, onde reconhecemos a selva, seus habitantes e a língua espanhola, coadjuvada pelo portunhol e pelo guarani [01, 02, 03]. Mas foi ao Uruguai que o escritor julgou pertencer durante uma viagem à Paris. “Turistar” permitiu-lhe, afinal, refletir sobre o peso dos deslocamentos1 e, inclusive, revisar seu conceito de pátria2.

O lugar pátrio de Quiroga privilegia o estado de bem-estar pessoal, em detrimento de naturalidade ou genealogia. Formula-se, ademais, fazendo uso de um recurso inacessível aos protagonistas de “Os imigrantes”, desde o princípio privados de parâmetros comparativos. Neste conto, um homem e sua esposa grávida rumam a outro continente. Marcham empurrados pela insustentabilidade de sua terra natal, confiantes na posterior reunificação da família.

Acompanhando a jornada do casal de “Os imigrantes”, penso no efeito que os estabelecidos têm sobre aqueles que migram. Reconheço o medo do diferente e o egoísmo que tumultuam travessias infiltradas de esperança e, também, a solidariedade que nutre e quase atenua pesadelos. Então me alinho aos solidários, torcendo para que nossas ações formulem um mundo mais intercultural e humano.

À leitura!


Para ouvir o conto em espanhol, clique aqui.

Citações:

1 “Custa muito fazer uma viagem, mesmo que a distância que percorremos seja pequena. O princípio da inércia parece refletir-se no cérebro e se sofre com a tradução dos pontos de vista afetivos. E quando nos afastamos por muito tempo, longe, muito longe, o espírito sente o abalo de um pressentimento que nos afoga. É uma pena abandonar a cidade em que se viveu, os amigos, os costumes, os horizontes, a família, os céus […].” (QUIROGA, 1950, p. 45, tradução minha).

¹ “Cuesta mucho hacer un viaje, aunque la distancia a que nos alejemos sea corta. El principio de inercia parece retratarse en el cerebro, y se sufre con la traslación de los puntos de mira afectivos. Y cuando nos alejamos por mucho tiempo, lejos, muy lejos, el espíritu siente la sacudida de un presentimiento que nos ahoga. Es pena abandonar la ciudad en que se ha vivido, los amigos, las costumbres, los horizontes, la familia, los cielos […].” (QUIROGA, 1950, p. 45).

2 Quanto a Paris, será muito divertido, mas eu me chateio. A verdade é que não tenho dinheiro, o que atrapalha minha diversão. De todo modo, é bela aquela cidade em que uma pessoa se diverte, quer seja Paris ou Salto. Um poeta grego decadentista disse: “A pátria está onde se vive bem.” É um ótimo pensamento. Por que dizer que não há lugar como Paris se não me divirto aí? Que aqueles que gostam dela aproveitem-na, mas eu não tenho nenhuma razão para isso; e, na verdade, estou dizendo que Montevidéu é melhor do que Paris, porque ali eu me sinto bem, que Salto é melhor do que Paris, porque ali eu me divirto mais. Que importa que outros digam o contrário, porque ali se sentiram bem? Cada um vive a vida que é possível; e o caçador que vive em sua floresta e o camponês que gosta de sua espingarda e de seus sóis tem razão quando dizem que a montanha ou o povoado é melhor do que Paris. O que devemos dizer em face disto? Divirta-se enquanto é tempo, esteja onde estiver. O lugar que nos viu felizes e alegres é o melhor de todos. Em Paris, se divertem os outros; eu em Salto me divirto. Direi, portanto, que isto é melhor do que aquilo? Seria uma estupidez (QUIROGA, 1950, p. 102, tradução minha).

² En cuanto á París, será muy divertido pero yo me aburro. Verdad que no tengo dinero, lo que es algo para no divertirse. De todos modos, es hermosa ciudad aquella en que uno se divierte, ya se llame París o Salto. Un poeta griego de la decadencia, dijo : “La patria está donde se vive bien”. Es un gran pensamiento. ¿Por qué he de decir yo que no hay como París, si no me divierto? Quédense en buena hora con él los que gozan; pero yo no tengo ninguna razón para eso, y estoy en lo verdadero diciendo que Montevideo es mejor que París, porque allí lo paso bien; que el Salto es mejor que París, porque allí me divierto más. ¿Qué da que otros digan lo contrario, / porque aquí lo han pasado bien?. Cada cual vive la vida que le es posible; y el cazador que vive en su bosque, el rural que goza con su escopeta y sus soles, tiene razón cuando afirma que el monte ó el pueblo es mejor que París. ¿Qué tenemos que decir á eso? Gócece en buena hora, ya sea donde sea. El lugar que nos ha visto felices y contentos, es el mejor de todos. En París se divierten los demás; yo en Salto. ¿Diré por lo tanto que esto es mejor que aquello? Sería una estupidez (QUIROGA, 1950, p. 102)

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Horacio Quiroga

Regina Rheda, literatura e veganismo

João é brasileiro, Juan é mexicano. Os dois vivem nos Estados Unidos apesar de não terem autorização para residir ou trabalhar no país. A aposta em um futuro melhor uniu-os na condução de serviços de manutenção em uma fazenda que abriga animais abusados. Desafiados pela necessidade de lidar com uma língua estrangeira, com valores referentes à interação de animais humanos e não-humanos com os quais não estão familiarizados e, ainda, pela necessidade de confiar em conhecidos, dão vida ao conto “O santuário”, de Regina Rheda, para nos lembrar que gestos que acolhem podem abrir caminhos imprevistos, marcados, inclusive, por ganhos mútuos para os envolvidos.

“O santuário” faz parte da coletânea “Pátria estranha”, publicada em 2002 pela editora brasileira Nova Alexandria; do livro “First World Third Class and Other Tales of the Global Mix”, publicado pela University of Texas Press em 2005, que compilou vários textos de Rheda, vertidos para o inglês; e da antologia “Luso-American Literature: Writings by Portuguese-Speaking Authors in North America”, publicado em 2011 pela Rutgers University Press, também na versão em língua inglesa.

Rheda também ultrapassou as fronteiras brasileiras, tendo assumido um percurso que a levou de Santa Cruz do Rio Pardo (SP) à capital paulista, e daí à Flórida e à Califórnia, nos Estados Unidos. Formada em Cinema, trabalhou nesta área e com outros tipos de produção audiovisual até decidir enveredar pela literatura, onde teve uma estreia bem-sucedida, considerando-se que “Arca sem Noé: Histórias do Edifício Copan”, seu primeiro livro, foi agraciado com o Prêmio Jabuti – na categoria “Contos” – em 1994, além de ter sido objeto de uma segunda edição, publicada pela editora Record em 2010.

Atenta às técnicas que emprega na elaboração de seus textos literários, adepta do humor e da ironia, em particular, para a construção de efeitos de sentido, Rheda adicionou um ingrediente novo à sua escrita desde que passou a se identificar com o veganismo e com sua vertente abolicionista. Desde o começo deste século, a escritora tem trabalhado literariamente o tema dos direitos dos animais. Seu romance “Humana festa” (2018), por exemplo, é considerado pioneiro por tematizar o veganismo ao mesmo tempo em que alude a questões fundamentais, como o feminismo e a reforma agrária. Rheda também tem elaborado traduções autorizadas de textos de Gary Francione, professor da área de Direito que repudia a exploração de animais não-humanos por humanos. E assim contribui para a disseminação dessas ideias no espaço lusófono.

Interessados em ir além da leitura de “O santuário”, encontrarão online o conto “Falta d’água”, além de entrevistas interessantíssimas em que Rheda trata do fazer literário, de ativismo (1) e (2) e de sua relação com o Copan, onde morou. O burburinho resultante da recepção dos contos que têm o prédio como personagem pode ser acompanhado aqui e aqui. Já seus livros são mais facilmente encontrados em sebos ou em formato e-book.

À leitura!

Emigrantes portugueses na construção da literatura lusógrafa contemporânea

Rumamos a Dortmund, na Alemanha, para conhecer uma iniciativa da Oxalá Editora, que se dedica à descoberta e à publicação de escritores portugueses emigrados. Referimo-nos à publicação, em 2018, do livro “Contos da Emigração: Homens que sofrem de sonhos”. No site da editora, encontramos uma entrevista do responsável pelo projeto, o jornalista (?) Mário dos Santos, conduzida por Nuno Gomes Garcia, autor de um dos textos da coletânea. Abaixo, ela surge acompanhada por outra, do próprio Nuno, em que ele comenta sobre o texto que escreveu.

Nuno Gomes Garcia conversa com Mário Dos Santos

«Contos da emigração: Homens que sofrem de sonhos» é o mais recente livro, uma coletânea de 12 contos, idealizado por Mário dos Santos, fundador e editor da Oxalá Editora, uma chancela orientada para a Diáspora. Os direitos da obra reverterão em favor da Plataforma de Apoio aos Refugiados.

Sediada em Dortmund, na Alemanha, a Oxalá Editora tem por objetivo fazer chegar a voz dos 5 milhões de Portugueses que vivem dispersos pelo estrangeiro aos 10 milhões de Portugueses que vivem em Portugal, distribuindo, para esse efeito, os livros tanto dentro como fora de Portugal.

Este livro, que mistura dois autores clássicos portugueses – Eça de Queirós e José Rodrigues Miguéis – com dez autores contemporâneos (nove dos quais expatriados), explora os caminhos da emigração, tanto os da década de 1960 como os mais recentes que datam do período da crise pós-2008.

Uma obra rica, que se alicerça na variedade de registo de cada autor – alguns deles já consagrados -, indo desde a ruralidade do interior português à urbanidade londrina ou alemã; do drama à sátira, explorando o momento do «salto», a dolorosa adaptação a diferentes culturas e idiomas, passando pela discriminação e a segregação sofridas na terra de acolhimento ou, o reverso da medalha, pelos surtos xenófobos e racistas contra outras comunidades, preconceitos extremistas que alguns emigrantes portugueses também partilham.

Mário, antes de nos debruçarmos sobre o livro, falemos um pouco do teu percurso. Tu fundaste o Portugal Post, um jornal mensal publicado na Alemanha em língua portuguesa, e há pouco decidiste dedicar-te inteiramente à Oxalá Editora. O que é que te levou a mudar de rumo?

Sim, de facto, estive à frente do jornal durante 25 anos. Achei que ao fim desses anos seria o momento de passar a pasta, digamos assim, a alguém que desse continuidade a um jornal com história e muito importante para a vida da Comunidade na Alemanha. Durante o meu percurso no jornal, houve ocasiões em que pessoas se me dirigiam dizendo que tinham coisas escritas (poesia, contos, histórias da sua vida…) na gaveta e que gostariam de as verem publicadas. Algumas dessas pessoas viviam na Alemanha, mas também havia gente de outros países que me diziam que gostariam de ver os seus escritos publicados e me desafiavam para o fazer. Percebi então que fazia sentido uma editora vocacionada para os autores da Diáspora. Em 2015, decidi criar a Oxalá Editora pensando já que daí a pouco tempo entraria no gozo da reforma e que esse seria um tempo para me dedicar àquilo de que sempre gostei, os livros.

A editora que também tem edições bilingues, em português e em alemão, veio de facto preencher um vazio que era evidente. Como editor, qual é o teu principal objetivo: fazer chegar a voz da diáspora a Portugal ou promover a literatura portuguesa na Alemanha?

Sim, há edições bilingues. Gostaria de destacar a tradução para alemão da obra de Sophia de Melo Andresen, «A menina do mar». Mas a minha principal preocupação são os autores que vivem no exterior, ou seja, a Oxalá Editora não se remete apenas à Alemanha. Há, inclusivamente, propostas de parceria provenientes de outros países. A ideia é ter uma casa editora que perceba a realidade da Diáspora. Sabes tão bem como eu que em Portugal não se dá a devida importância aos Portugueses que vivem no estrangeiro, sejam eles poetas ou carpinteiros; cientistas ou concierge… Mas também é verdade que hoje se considera mais «quem vive lá fora», apesar dos preconceitos face aos emigrantes. O meu objetivo é descobrir bons autores da Diáspora, vivam eles nas Américas, na Europa ou seja lá onde for, publicá-los e divulgá-los em Portugal. Muitos têm, digamos assim, esse sonho, o de serem reconhecidos, não só nas Comunidades onde vivem, mas também, por questões sentimentais, de ligação ao país, a Portugal, onde gostariam de ver os seus livros a circular. Isso é um pouco difícil, sabemos. Quer dizer, nalguns casos até não é tão difícil assim.

Falemos do livro, então, que tem um título que resume em poucas palavras a essência do que é ser emigrante. Mas diz-nos quais os escritores que participam na coletânea. Vivem todos fora de Portugal?

Com a exceção da Ana Cristina Silva, todos os outros vivem fora de Portugal. Eu convidei-a porque ela tem uma crónica no Portugal Post.

E a Oxalá também publicou «A mulher transparente», um dos romances da Ana Cristina Silva.

Exatamente. Os outros autores vêm do Reino Unido, de França e da Alemanha. A minha preocupação foi juntar autores que vivem e sentem a diáspora e, olhando para quem pudesse representar, digamos assim, o espírito do livro, convidei a Gabriela Ruivo Trindade, vendedora do prémio Leya e que vive em Londres. Falei ao Nuno Gomes Garcia, ou seja, contigo, também com obra publicada e reconhecida. Falei ainda com uma autora que vive em Hamburgo, a Cristina Torrão, e com o Miguel Szymanski, um autor que tem a particularidade de se sentir emigrante alemão em Portugal e emigrante português na Alemanha. Mas o livro vale por todas as histórias lavradas pela caneta e no sentir do que é estar distante de Portugal.

Os contos são todos inéditos?

Sim, os contos dos autores vivos são todos inéditos.

E por que razão optaste por juntar a voz de dois clássicos da literatura à voz de dez escritores contemporâneos?

Só para tentar dizer que também os escritores clássicos viveram fora do país. Eles foram tão emigrantes como nós. Muita da obra do José Rodrigues Miguéis, por exemplo, incide sobre temáticas da emigração. E o Eça de Queirós…

O Eça foi Cônsul em Paris.

Sim, foi, de certa forma, emigrante, tendo falecido em Paris, como se sabe. Essa ideia surgiu-me assim muito espontânea. Mostrar que os problemas da emigração são muito parecidos independentemente da época. O que eu espero é que as pessoas que leiam este livro se apercebam que mesmo autores que ficaram na História da Literatura viveram as situações que os emigrantes de hoje vivem.

Esperas uma boa receção da obra por parte do público português?

A obra também vai ser distribuída em Portugal pela Europress, a empresa distribuidora com a qual a Oxalá colabora. E na Diáspora, temos contactos com algumas livrarias e vamos também fazer a promoção da obra em muitos países e em quase todos os continentes. A recepção e a aceitação que o livro dependerá de muitos fatores. Mas o que posso desde já dizer é que vale a pena ler este livro para melhor perceber os Portugueses das sete partidas do mundo.

Mário, para terminarmos, fala-nos de um livro de que tenhas gostado.

Assim de repente, sugiro o Primo Levi.

Qual? O “Se isto é um homem?”

Exatamente! As pessoas que vivem no nosso tempo deveriam ler esse livro, que retrata o sofrimento das vítimas do Holocausto, num momento em que os governantes dos grandes países amedrontam o mundo com discursos belicistas e perigosos para a humanidade.

Os contos da coletânea:

  • «A salto» de Ana Cristina Silva
  • «Vida adiadas» de Cristina Torrão
  • «Um poeta Lírico» de Eça de Queirós
  • «Cab driver» de Gabriela Ruivo Trindade
  • «O apelo do vale» de Isabel Mateus
  • «O viajante clandestino» de José Rodrigues Miguéis
  • «Uma história verdadeira» de Luísa Coelho
  • «A minha bicicleta verde» de Miguel Szymanski
  • «O sobrinho» de Nuno Gomes Garcia
  • «Partida largada fugida» de Rita Sousa Uva

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris. Publicada em 26/03/2018 em https://www.oxalaeditora.com/conto-iemanja/nuno-gomes-garcia-conversa-com-m%C3%A1rio-dos-santos/. Acesso em: 05 out. 2019.


Capa da coletânea

Cap Magellan conversa com Nuno Gomes Garcia

Cap Magellan: Como acolheste o convite que te foi feito para participares na coletânea?

Nuno Gomes Garcia: Pensei imediatamente que era por uma boa causa. Não apenas porque os direitos revertem a favor da Plataforma de Apoio aos Refugiados, mas também por permitir a bons autores, quase todos expatriados, escreverem sobre um tema que inexplicavelmente é pouco tratado na literatura contemporânea portuguesa: a emigração. Um país que possui um terço dos seus cidadãos a viver fora do território português e que finge que a emigração não é uma componente estrutural da sua sociedade há mais de 500 anos está condenado a ser um país que não se compreende a ele próprio. Se Portugal tem 5 dos seus 15 milhões de nacionais a viver no estrangeiro, esse facto tem de se refletir obrigatoriamente na sua matriz cultural, nomeadamente na literatura.

CM: Porquê utilizar a metáfora dos legumes?

NGG: A minha escrita, acho que é visível em todos os romances que escrevi, leva-me sempre a expor as minhas inquietudes através da sátira e do “tremendismo”, no exagero. Ora, uma das coisas que mais me inquieta hoje na Europa é o regresso às questões identitárias, o recrudescimento dos nacionalismos protofascistas presentes em alguns governos e de outros componentes abertamente fascistas em algumas franjas da sociedade.

Como, a meu ver, não existe nada de mais ridículo, mesmo do ponto de vista da comicidade e do humor, do que um certo povo se sentir superior a outro, ou do que um ser humano odiar outro ser humano por causa da cor da sua pele, por exemplo… tendo isso em vista, eu tentei fazer a experiência de transportar toda essa problemática para o mundo dos vegetais.

Só para que o leitor compreenda que ver uma cenoura a odiar uma beterraba, ambas antropomorfizadas, por causa da cor da sua “casca” é tão absurdo como um humano odiar outro humano por causa da cor da sua pele, da religião ou da orientação sexual.

CM: A emigração é somente feita de mulheres e homens que sofrem de sonhos? Não achas que pode ser um pouco miserabilista como forma de apresentar a emigração?

NGG: Não creio que se possa reduzir os dez contos ao título da coletânea, que é por natureza subjetivo e que tem um certo pendor poético. O livro contém dez maneiras diferentes de olhar para o fenómeno da emigração. Dez contos que mostram as complexidades ligadas ao simples facto de trocar uma realidade social por outra. Se há emigrantes que realizam os seus sonhos, outros há que vivem autênticos pesadelos. O sofrimento, tal como as alegrias, são sentimentos inerentes à vida, logo também inerentes à emigração.

Disponível em: http://capmagellan.com/a-coletanea-contos-da-emigracao-chegou-as-livrarias/. Acesso em: 05 out. 2019.

Que possamos logo encontrar «Contos da emigração: Homens que sofrem de sonhos» em formato digital e, quiçá, em nossa livraria preferida!

Lina Meruane em entrevistas

Lina Meruane é a autora do romance “Sangue no olho”, texto discutido no 7º encontro do Leituras dos Girassóis. O livro, que cativou os membros do clube, aterrissou no Brasil como resultado da intervenção de Livia Deorsola, editora brasileira especializada em literatura hispano-americana. Sob os seus cuidados, a extinta editora Cosac Naify publicou a primeira edição do texto que, em 2018, entrava para o catálogo da SESI-SP editora, assim permanecendo ao alcance do público brasileiro.

Meruane nasceu no Chile e tem ascendentes palestinos. Vive hoje nos Estados Unidos, a partir de onde concilia sua atuação no campo da literatura com a carreira de professora universitária.

Lina Meruane – Foto de Daniel Mordzinski

Como toda leitora, tem seus livros prediletos – veja aqui e aqui. Enquanto alguém envolvida com a produção e o ensino de literatura latino-americana, tem escritores brasileiros sob o radar, como Clarice Lispector, que é ucraniana de nascimento, e Nélida Piñon, a imortal filha de espanhóis. Da primeira, Meruane se dedicou a analisar o conto “Legião estrangeira”. À segunda, fez referência em seu ensaio “Contra os filhos”, lançado no Brasil pela editora todavia, texto lido e comentado por escritores como Tércia Montenegro, Maria Clara Drummond e Sérgio Tavares.

A seguir listamos algumas das entrevistas concedidas por Meruane, aproveitando para destacar trechos que tratam de sua relação com a América Latina, de como entende a literatura, de seu romance “Sangue no olho” e, finalmente, de como se percebe. Como incentivo à leitura, ressaltamos que “Sangue no olho” é um ótimo romance. E que mesmo nas ocasiões em que o entrevistador não esteve à altura da tarefa, as considerações de Meruane acrescentam, nos instigando, portanto, a procurar por seus escritos e a demandar por mais traduções deles.

Vejamos:

  • Sobre a relação da Lina migrante com a América Latina:

Você mora nos EUA há anos. Você se enxerga mais próxima da literatura latino-americana ou da tradição norte-americana?

Sempre prestei muita atenção à produção literária da América Latina, e me mudei para Nova York para fazer um doutorado em literatura latino-americana. Essa é, portanto, a tradição que conheço melhor, e com a qual continuo dialogando. Leio certos autores norte-americanos (e vejo suas peças e seus filmes), mas não mais do que os europeus de modo geral, e com certeza leio menos norte-americanos do que franceses. Mas não importa tanto o lugar de onde se escreve: o que me interessa em um autor não é seu local de origem e sim a sua maneira de entender o literário, o modo de escrever, sua relação com certas tradições. Para mim, Faulkner é tão grande quanto Beckett, Woolf como Gertrude Stein, Mishima como Celine etc. No contemporâneo os temas e os ecos da literatura de nosso continente ressoam mais em mim, e minha escrita se articula com e certamente contra essa tradição. (1)

Como marca sua literatura o fato de viver fora de seu país?

A maneira que eu percebo é um pouco distinta da sua, eu vejo os escritores do meu tempo se movendo em muitas direções e para destinos distintos. Há um dinamismo não tão simples de ser traçado nem geográfica nem historicamente… Eu pertenço a uma família de migrantes; está na minha tradição estar inscrita no nomadismo e um tema recorrente quando nos encontramos é… a situação de nossas malas! Há sempre uma maleta ao redor da conversa e também, isso percebi muito depois, em meus romances. Sempre a protagonista está viajando, e a distância lhe permite ver o que deixa de maneira crítica. É como se as protagonistas de meus romances precisassem ver de longe para ver bem. (2)

Cortázar declarou que um dia se deu conta que ser um escritor latino-americano significava fundamentalmente que havia de ser um latino-americano escritor: havia de inverter os termos e a condição de latino-americano, e colocar isso também no trabalho literário. Como é ter o papel de uma escritora chilena em Nova York?

Cortázar foi, durante anos, um escritor cem por cento argentino e teve que se converter em latino-americano como acontece com muitos de nós quando vivemos no exterior. Do exterior, o impulso para juntarmos todos em um mesmo saco latino-americano é muito forte, simplifica as coordenadas e anula as diferenças, permite as generalizações. Eu continuo me sentindo uma escritora chilena, e reivindico acima de tudo política e solidariamente a minha latino-americanidade, mas estou permanentemente sub-estimando o fato de que há muita disparidade interna, não somente entre os países como também entre classes e etnias, verdadeiras batalhas silenciosas às quais se deve prestar atenção. Eu gostaria de acreditar que o que posso fazer neste território é ampliar um pouco os espaços da literatura latino-americana através do ensino das nossas culturas e literaturas, ou pelas conversas sobre livros maravilhosos produzidos em pontos diversos do continente e por escritores que sendo latino-americanos vivem no exterior, e também apoiando a possibilidade de que continuem falando as nossas diversas línguas nos Estados Unidos ao invés de passarmos todos à língua dominante. (3)

  • Sobre a literatura:

Há na literatura alguma ponte de salvação?

[…] O que penso é que a missão da literatura não é a da mobilização e, nem sequer, a da empatia com o outro: são efeitos desejáveis mas esta não é a sua missão, porque se a literatura se dedica a isso acaba se tornando propaganda com a pretensão de convencer. A literatura deve colocar perguntas e não resolvê-las, deve nos levar a pensar inclusive em questões contraditórias, deve nos levar a aprofundar sobre os conflitos humanos. Assim algo pode acontecer mas este algo profundo é raramente imediato: é um efeito a longo prazo e nunca, a salvação. (3)

Precisamente, todo o romance está imerso em debates éticos. Qual é o limite ético da literatura?

Eu queria dizer algo que fosse muito ético, mas lamentavelmente não vejo limites éticos dentro da literatura. Se quisermos ver cara a cara a monstruosidade que somos, há que se mostrar precisamente esses lugares onde toda a ética foi perdida, há que insistir nessas zonas escuras, ambíguas, remexer nesses limites incômodos, às vezes intoleráveis. Talvez aí se possa extrair, por oposição, uma ética, e um escritor ou escritora esperaria que essa tarefa cumpram os leitores: a de reagir ante o que se lê, a de refletir de maneira mais complexa sobre o que se coloca, a de se propor a participar eticamente, desde essa terrível claridade, do cenário social. (2)

  • Sobre o romance “Sangue no olho”:

Sangue no olho é sua primeira obra publicada no Brasil. Como ela se relaciona com o restante de sua obra ainda inédita em português?

Todos os meus livros, penso, são diferentes; cada um foi respondendo, ou tentando responder, a uma pergunta que, no momento, era urgente. Comecei trabalhando no território da infância feminina, examinando as maneiras como as meninas são educadas para serem mulheres, o disciplinamento feroz pelo qual passamos: eu estava interessada em mostrar essa zona obscura e indisciplinada da infância. Nisto se encaixam os meus três primeiros livros escritos no Chile, e talvez não seja tão estranho o fato de que eu os escrevi neste país, pois a disciplina também faz parte da ditadura na qual cresci. A saída do Chile há quinze anos introduziu novos cenários (Chile e Estados Unidos como paisagens distintas, mas também como vasos comunicantes. Bem ou mal, o meu país foi um laboratório de experimentos neoliberais dos anos oitenta) e novos temas, o que você mencionou antes, o da doença. Talvez o que todos os meus livros tenham em comum é que no centro há o corpo de uma mulher que resiste a certas normas, que leva as lógicas imperantes a extremos que podem ser prazerosos e redentores, mas também sinistros. (1)

Caso houvesse uma inversão de papéis em Sangue no olho e fosse a protagonista que cuidasse do outro, como seria? As mulheres se veem em posição mais vulnerável quando acometidas por uma doença, ou o gênero não importa?

O gênero importa muito. Historicamente, as mulheres prezam o sacrifício como um valor: a mãe deve se sacrificar por seu filho, o pai contribui; a esposa se sacrifica pelo marido mas não deve esperar o mesmo de volta; a filha se sacrifica pelos pais e, sobretudo, pela mãe porque lhes deve a vida enquanto seus irmãos se apoiam nela… Isso está poderosamente inscrito na cultura e se reforça o tempo todo através de discursos múltiplos sociais. Quando as mães conseguem dizer não aos pedidos de seus filhos sem sentirem culpa ou serem culpadas? Quando, na intimidade de um casal, a mulher logra colocar as suas necessidades acima da dos outros como quase sempre fazem os outros? Não são as filhas que se encarregam de cuidar dos pais idosos mais frequentemente? Não digo que sempre seja assim, o que digo é que custa mais às mulheres deixarem de agir assim porque foram educadas para servir e para sentir que os seus desejos e talentos possuam menos valor. Isso segue sendo assim e é difícil enxergar. Quando tenho alguma dúvida na minha vida pessoal, sempre, como regra, inverto a situação e penso no contrário: o que fariam o meu parceiro, o meu irmão, o meu pai ou o que faria nesta situação se eu fosse um homem? Não é que queira ser um homem, isso nem me passa pela cabeça. Nada mais é do que um exercício que me permite ver até que ponto obedeço ao chamado de uma regra cultural retrógrada e reajo a um desejo. Para não me prolongar, foi isso precisamente o que fiz ao escrever o meu romance, dar uma volta na relação do gênero e ver a situação clássica desde a sua inversão. Acredito que o que surpreende aos leitores é precisamente esta inversão: aí se enxerga as coisas muito melhor, e elas assustam muito mais. (3)

Tu último libro, Sangre en el ojo, fue publicado en distintos países de Europa como Francia, Alemania, Reino Unido, Italia y Holanda. ¿Cuáles crees que son las principales diferencias entre la recepción de tu obra en Europa y en América Latina?

Es difícil saber, yo no ando a la caza de las reseñas de mis libros pero mi impresión es que no hay una distinción clara entre Europa y América Latina, ese trazo continental es demasiado grueso. Hay muchas diferencias culturales e ideológicas y expectativas literarias entre los países de Europa así como entre los países americanos. Y además, en cada uno de esos lugares hay importantes diferencias de género, clase y raza, que se reflejan en la lectura, entonces no lo sé. Solo anecdóticamente te puedo comentar que  mientras que en Chile nadie leyó el contenido político de mi novela, en Italia no dejaron de reparar en los escasos momentos en que se comenta la relación entre cuerpo enfermo y dictadura, y mientras en Brasil algunos lectores celebraron la escena sexual en el avión, nadie más dijo nada, al menos que yo sepa sobre esto. Y en las sucesivas presentaciones de mi libro, hay lugares donde el público percibe el humor negro del libro y otros donde la respuesta es sería y acongojada. (4)

A protagonista disse em uma conversa com sua professora que só há um escritor cego. Imagino que tenha pensado em Borges, mas há na literatura ocidental certa corrente da literatura da cegueira. Você pensou nessa questão quando escrevia o livro?

Era Borges a figura, com efeito, porque a cegueira de Borges é única. Borges fica cego aos 50 anos, no momento em que começa a ser internacionalmente reconhecido, e fotografado. O rosto de Borges, com a vida perdida, com suas mãos de sábio sobre a bengala, é uma imagem icônica, indelével. É o grande cego da nossa literatura contemporânea. Não é que Lucina não saiba de Homero, de Milton, de Joyce. Então, o que ela quer dizer é que o grande, o contemporâneo, o cego terminal que os latino-americanos recordam é Borges. Por isso você adivinha. (2)

Foi influenciada por algum livro específico de um escritor cego (Borges é uma referência clara), ou sobre a cegueira de modo mais amplo?

[…] Eu tinha lido os livros mais canônicos da cegueira latino-americana, como “Sobre heróis e tumbas”, de Ernesto Sabato, e esse fabuloso conto de Clarice Lispector chamado “Amor”, mas meu romance não surge dessas leituras específicas, e sim da literatura da enfermidade, que enfrentei enquanto escrevia minha tese de doutorado. (5)

  • Sobre Lina Meruane:

En tus obras queda en evidencia el papel de la lectura, del ejercicio de la escritura, pero también el de las redes intelectuales y el de los afectos que se forman entre escritores, académicos e investigadores. ¿Se podría decir que el escritor contemporáneo ya no escribe aislado del mundo? ¿Cuál sería el lugar de la escritura y lectura en tu cotidianidad?

Pienso que hay muchas maneras de ser escritor; por resumir un poco y generalizar otro poco, diría que hay tres posiciones. Una es la del quien se plantea el aislamiento, el silencio, el bajo perfil que a veces es una decisión literaria y otras responde a la timidez o a la fobia social. Otra es la de quien piensa la escritura como plataforma mediática para obtener un estatus de celebridad, ahí hay mucha sobrexposición que puede acabar por distorsionar la propia escritura al volverla un medio para lograr un fin de orden publicitario. Ese es el lugar más peligroso y entre los dos extremos yo valoro más el del retraimiento de quien escribe por una necesidad íntima. Lo que me pasa a mí es que aunque necesito mucho silencio y tiempo para escribir, soy un animal social. Me da curiosidad la gente, me atrae hablar con gente y escucharla, y por supuesto me disgusta a ratos pero hay algo que me importa en el diálogo y en la discusión. Por eso formo redes, por eso presento mis libros, me importa la sala de clases donde la lectura, la escritura y la reflexión provocan algo fresco, por eso escribo ensayos que pretenden interpelar y columnas de opinión (aunque muy pocas ahora porque cansa mucho esa búsqueda de nuevos temas e ideas, yo no tengo tantas ideas, me conformo con tener unas poquitas, necesito tiempo para reflexionar y posicionarme en lo que ocurre cotidianamente). Todo eso es el espacio donde ocurre lo político y eso para mí es central en mi obra y en mi vida de los afectos. (4)

Ao discutir Ensaio sobre a cegueira, José Saramago declarou: “Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso”. Ao escrever Sangue no olho, você compartilha desta angústia sentida por Saramago?

São raras as vezes em que penso no leitor enquanto escrevo, eu não saberia dizer quem é o meu leitor… e muito menos como é, o que quer, o que busca. Por melhor ou pior que seja, eu sou a única leitora que posso imaginar e a única que posso agradar além de incomodar. Isso me dá uma enorme liberdade na hora de escrever, uma liberdade para ir até onde deva ir um romance mesmo quando este destino seja extremamente estranho e cruel. Nunca tratei com pena a leitora que eu sou, busco levar o romance até certos limites, fazer ver certas coisas que nem eu sei quais são quando começo a escrever. Por outro lado, sinceramente não acredito que os leitores adultos não saibam o quão cruéis nós, os seres humanos, somos. Não é essa a realidade que poderiam descobrir nem no meu romance ou em algum outro. Tenho a impressão de que não é a crueldade e sim os modos sofisticados em que, às vezes, aparece, os meios utilizados, as perguntas que nos obriga a fazer. Outra diferença que sinto perante esta afirmação de Saramago é que não sofro enquanto escrevo, por mais que a cena seja terrível. Não sofro com os personagens, não sofro com as suas digressões: toda a minha energia se volta para o material da escrita e não na sua profundidade moral. Se a frase não sai, se a cena não tem força, se o personagem não se estrutura, é quando me desespero. Sei que é bem-visto um escritor sofrer ao escrever — é um legado do romantismo, penso às vezes; noutras, penso que sofrer ou dizer que se sofre é uma justificativa necessária ao escritor perante o mundo quando não tem que se levantar de manhã cedo, tomar um ônibus lotado, e passar horas em um escritório ou uma fábrica. Tenho um trabalho em tempo integral, não tão sacrificado quanto o do operário ou do burocrata, é certo, mas talvez porque não preciso destas justificativas, posso dizer que desfruto muito quando tenho a chance de tirar tempo para escrever e encontro sucesso na execução de um texto que alcança até onde deve ir. Isso é o que sinto quando escrevo ficção, o grande prazer da escrita por si só, até quando o que esteja contando seja terrível, sei que se trata de um artifício. Dito isso, reconheço que senti algo bem diferente ao escrever o meu livro sobre a situação palestina, e creio que o sentimento foi assim porque estava falando das vidas reais das pessoas que sofrem e que são violentadas sistematicamente por outras: aí, sim, eu me vi muito comovida e indignada. (3)


Por fim, textos da escritora e afins:

  • Um excerto de Sangue no olho (Cosac Naify, 2015)
AMANHÃ

(Cá estou. Lá vou eu. Olhando outra vez pela janela do táxi, com o olhar fixo, tentando, da estrada, captar um pouco do horizonte, a silhueta agora oca de duas torres pulverizadas, a linha do céu mutilada junto ao brilho tênue do rio salpicado de estrelas, o néon do History Channel deslumbrante sobre a água. Vejo tudo sem ver, vejo tudo através da lembrança do já visto ou através dos teus olhos, Ignacio. Os faróis do táxi rasgavam uma leve neblina noturna de papel e metais chamuscados que se negava a se esfumar, grudava no vidro e o embaçava. O turco ultrapassava alguns carros aos trancos, mas também deixava outros nos ultrapassarem, velozes, buzinando. Vocês cochilavam, talvez tenham até caído no sono, embalados pelas inclementes aceleradas e freadas. Acomodei a testa na janela e fechei os olhos até ser sacudida, Ignacio, por tua voz, tão nova em minha vida que às vezes eu demorava a reconhecer como tua, tua voz que, aliás, mudava de tom quando você falava em outra língua. Era uma voz para dar instruções em inglês ao motorista do táxi: que saísse pela próxima exit, que virasse para o oeste, que seguisse em direção à Washington Bridge, ainda acesa no horizonte. Não tínhamos planejado cruzar aquela ponte enferrujada, não estávamos indo para o subúrbio, do outro lado, onde eu morei um dia e para onde nunca pretendi voltar. Estava voltada para o presente, eu, isso era tudo o que eu tinha enquanto deixávamos Julián na esquina do prédio dele e prosseguíamos para o teu, que agora era o nosso. E quando ficamos sozinhos você segurou meu rosto para que eu me virasse e te olhasse. Para que você pudesse me olhar. Teus olhos não percebiam nada de extraordinário, não viam o que havia atrás de minhas pupilas. Foi muito? Muito mais do que antes, falei, sombria, mas talvez amanhã. Amanhã você vai estar melhor. Mas amanhã já era hoje: só faltava clarear e as luzes mortiças serem eclipsadas pelo sol. Coroado com um turbante o turco parou de repente e escorregamos para frente. Não se mova, você disse, e depois senti a porta batendo, e você deve ter dado toda a volta para abri-la para mim, me dar a mão, me avisar que abaixasse a cabeça. Vendo-nos de longe, qualquer um diria que estávamos saindo de outro século, não de um carro. Descemos da máquina do tempo de braços dados e assim subimos a escadaria até o elevador e os cinco andares. Assim avançamos pelo corredor até o tilintar das chaves na fechadura. O ar parado do apartamento nos recebeu. O calor veio de todos os cantos, do chão sem tapetes, das paredes completamente nuas, das infinitas caixas que pareciam cheias de carvão em brasa em vez de livros. Havia dias que empacotávamos as coisas para uma mudança iminente. Por um corredor segui direto para o quarto, você entrou atrás: cuidado, deixei um copo d’água aqui pra você. E nos jogamos na cama e nos abraçamos apesar da umidade e, ungidos de suor, adormecemos. E na manhã seguinte você levantou as persianas e sentou na minha frente esperando eu acordar, não sei se do meu sonho ou da minha vida. Mas eu estava insone havia horas, sem coragem de abrir os olhos. Lina? Levantei uma pálpebra, depois a outra, e para meu espanto havia luz, um pouco de luz, luz suficiente: a sombra sanguinolenta não tinha desaparecido do olho direito, mas a do esquerdo se precipitara para o fundo. Eu só estava meio cega. E por isso aceitei teu café e o levei à boca sem hesitar, por isso até sorri, porque, apesar de tudo. E você estava ali, como outro caolho, sem entender o que tinha acontecido. Não podia calcular a gravidade. Não se animava a fazer todas as perguntas. Guardava-as para si, amarrotadas, como agora, nos bolsos.)


  • Um depoimento sobre o ensaio “Contra os filhos” (2014):
Lina Meruane




  • O conto “Amor”, de Clarice Lispector.

À leitura!

Emanuel Melo entre viver, escrever e pertencer

Emanuel Melo é um escritor nascido nos Açores, região insular de Portugal onde passou sua infância. Na sequência, emigrou para o Canadá, estabelecendo-se em Toronto. Daí o título de seu blogue – The Torontonian Azorean writer” que, à primeira vista, indica como o escritor percebe suas raízes geoculturais.

Nesta quinzena, aproveitaremos a oportunidade para fazer referência a quatro textos seus: “Being Through Words” (2018) e “Exile” (2016), publicados em seu blogue, “The New Wave of Luso-Canadians” (2017), publicado na imprensa, e “The Weekly Visit” (2014), conto publicado em uma revista literária.

Foto tirada por Fernanda Sousa (2016)

Em “Being Through Words”, Emanuel trata da disputa linguística que o habita e de seu desejo de fazer reviver em si mesmo a língua portuguesa, com a propriedade com que maneja a língua inglesa, íntima depois de décadas de convívio diário. Ele tece considerações sobre como elabora seus textos, assinalando o entremear de fios da língua portuguesa em textos construídos em língua inglesa como uma de suas características. E de modo sucinto, alude ao significado da memória para o imigrante, ao papel da tradução, além de procurar atribuir um sentido à ideia de pertencer.

Em “Exile”, Emanuel se revela investido em uma jornada por meio da qual pretende encontrar seu lar por meio da linguagem. E se confessa um escritor leitor que elege referenciais dentre seus pares, como Jhumpa Lahiri, de quem admira a “habilidade de articular sentimentos sobre linguagem e pertencimento”. São referenciais por meio dos quais valida, em algum grau, sua própria trajetória, aquilatando seu projeto literário e refletindo sobre suas experiências, a que dizem respeito a questão identitária, a questão linguística e, no plano artístico, o acabamento estético. Nesses textos, o escritor também faz referência às escritoras Avelina da Silveira e May Sarton.

Já no texto “The New Wave of Luso-Canadians”, Emanuel vai à sociedade que lhe circunda para retomar questões que lhe são caras. Trata-se de pensar o português em interação com a sociedade canadense. Para tanto, alude a imigrantes portugueses de duas épocas e a um Canadá que alterou sensivelmente, ao longo dos anos, os critérios por meio dos quais seleciona os estrangeiros que poderão habitá-lo. Nesse texto, indiretamente, o escritor dá visibilidade às maneiras por meio das quais podemos dar forma a um conceito: aqui devemos pensar no processo de corporificação de uma identidade nacional. Em síntese, somos convidados a considerar que “assim ou assado” pode-se ser português, algo que felizmente destoa das interpretações que buscam uma essência uniforme para aquilo que se quer nacional ou de uma mesma etnia, sempre se excluindo, quando não se esmagando, a diversidade e o que ela tem de potência nesses processos rotuladores.

Finalmente, o conto “The Weekly Visit”, narrado em terceira pessoa, nos põe em contato com personagens de uma mesma família: um homem e sua mãe viúva, ambos portugueses e há anos residentes no Canadá. A falta de sintonia ou a indisponibilidade emocional do filho para com a mãe bem como a postura vitimista dela ocupam o primeiro plano da narrativa. E motivos importantes são suscitados pelo texto, como a velhice, o (des)afeto e a solidariedade. Alguns deles são primordiais para migrantes, como a manutenção da identidade originária por meio dos hábitos alimentares e o convívio com línguas diferentes e os desafios advindos.

Aqueles que se sentem motivados a pensar sobre implicações culturais (e até políticas) do migrar e sobre o sentido de pertencer – a países, culturas, línguas e pessoas – terão suas reflexões nutridas pelas ideias disseminadas por esses textos de Emanuel. E enquanto não contamos com traduções suas, em particular os lusófonos que ousarem transpor uma língua outra perscrutarão um mundo com elementos que ressoarão em suas vidas, de forma mais ou menos explícita.

“Ema vem todos os anos”, conto de Andrea Fernandes (2014)

Ema vem todos os anos” é um conto escrito por Andrea Fernandes, de quem encontramos poucas informações online. Ellen Lima, que estudou contos da Guiné-Bissau durante seu mestrado, sugere que esse é o pseudônimo da chilena Tereza Montenegro, que se refugiou na Guiné-Bissau no final da década de 1970, fugindo do regime ditatorial instalado em seu país de nascimento.

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Mapa da Guiné-Bissau

Tereza é uma das fundadoras da Ku Si Mon, editora guineense que lançou a coletânea de contos de que o texto de Fernandes faz parte em 2014, quando essa casa editorial comemorava seus 20 anos de existência. Tereza é formada em Psicologia, é tradutora, revisora e se dedicou por anos ao estudo da literatura oral da Guiné-Bissau.

Já Andrea tem outro conto publicado na antologia “Contos do mar sem fim”, publicada no Brasil, graças a uma parceria estabelecida entre a Ku si mon, a editora brasileira Pallas e a angolana Chá de Caxinde. Esta publicação congrega contos de escritores vinculados à Angola, ao Brasil e à Guiné-Bissau. É nele que encontramos dados biográficos mais precisos sobre Andrea, aí apresentada como revisora tipográfica e como contista, por exemplo.

Publicação da Ku Si Mon editora

Tchetchu é o narrador do conto “Ema vem todos os anos” – ele que migrou, que retornou e que agora se vê abalado pela passagem do tempo, particularmente, por sentimentos que ressurgem quando retoma um antigo hábito. A movimentação desta personagem pode ser um estímulo para uma visita à história das Forças Armadas cabo-verdianas, da época em que o país contava com fuzileiros chegando aos Estados Unidos, envolvidos com baleeiros, ao presente, quando estabelece alianças com países europeus e africanos.

É Tchetchu também que nos faz pensar no fenômeno da migração internacional, entranhado na história de Cabo Verde, com repercussões culturais e econômicas relevantes. Cabo Verde que se apresenta como a terra da morabeza (1) e (2) e que timidamente passa a reconhecer que tem significativos passos a dar no sentido de integrar socialmente os estrangeiros que se mudam para o arquipélago. Sobre esta urgente e delicada questão, veja os textos (1), (2), (3) e (4).


São tantas questões, e ainda há mais duas a considerar: “Ema vem todos os anos” nos oferece uma oportunidade para refletir sobre a diferença existente entre os estatutos de imigrante e de turista. Sabemos que Tchetchu é um emigrante que retorna e, claro, não podemos perder Ema de vista. Esta personagem, já aludida no título do conto, é uma turista que, visita a visita, estabelece laços com a terra e com os conterrâneos de Tchetchu. Sobre os conceitos de turista, de (i)migrante, de refugiado e de asilado veja aqui e aqui.

Para finalizar, é bom lembrar que migração também combina com amor. Se lhe interessa este lado da história, leia sobre as experiências de imigrantes na Suécia e sobre a experiência da francesa Béatrice Huret, que se apaixonou por um iraniano. Também vale conhecer a iniciativa que fomentou o envio de cartas para imigrantes nos Estados Unidos. E já que turistas também podem causar uma impressão, que tal ouvir “Amor turista”? A letra e o clipe da música estão disponíveis aqui.


Está de passagem? Lembre-se que o Leituras dos girassóis já tem a programação de 2019 definida. Acompanhe e divulgue!

E aqui veja outras formas de oferecer a sua contribuição para este projeto.

Daniel Munduruku + São Paulo = ancestralidade e literatura

Daniel Munduruku é um escritor brasileiro pertencente à etnia indígena munduruku. Nascido no Pará, fez os cursos de mestrado e de doutorado na cidade de São Paulo, cidade que pretendeu homenagear, em 2017, quando ela completava 463 anos. Na ocasião, Daniel se filmou lendo o prefácio de seu livro “Crônicas de São Paulo: Um olhar indígena”, publicado pela editora Callis, em 2004. Nesta publicação, o escritor trata de alguns bairros da cidade que possuem nomes indígenas, regiões por onde já perambulou e das quais se aproximou mais via pesquisa. Nesse processo, Daniel aproveitou para refletir sobre seu próprio lugar em São Paulo ao mesmo tempo em que procurou estar em sintonia com ancestrais paulistanos.

Cristina Bailey e Regina Zilberman, entrevistando Daniel em 2010, partem de uma referência a “Crônicas de São Paulo […]” para perguntar a ele “de que modo ‘um olhar indígena’ sobre a realidade difere de um olhar ‘negro’ ou [de] um olhar ‘branco’?” A entrevista merece ser lida por todos que desejarem se familiarizar, ainda que de forma sucinta, com o modo como o escritor percebia a si e a elementos da sociedade brasileira na época. Os interessados em questões migratórias se atentarão, por exemplo, a sua menção a Eliane Potiguara, a quem reconhece “pela coragem que sempre teve ao escrever sobre a diáspora indígena, sobretudo dos indígenas nordestinos”. (Para outras indicações de textos produzidos por ou sobre indígenas, parece viável recorrer à seleção feita por Janice Cristine Thiél a pedido da Carta Educação.)


Abaixo, seguem dois textos de Munduruku, uma crônica do livro “Crônicas de São Paulo: Um olhar indígena”, por meio do qual a cidade de São Paulo é lida por alguém que passa a habitá-la, no processo estabelecendo conexões, identificando similaridades e diferenças, quiçá, complementaridades. E, na sequência, um texto publicado no blogue do escritor, em que ele lida com as ideias de pertencimento e de identidade e nos indica as expressões mais adequadas para fazermos referência aos originários do Brasil.

Desejamos a todos uma boa leitura! E não se esqueçam de compartilhar este post com os amigos, de perto ou de longe!

Tatuapé – o caminho do tatu

Uma das mais intrigantes invenções humanas é o metrô. Não digo que seja intrigante para o homem comum, acostumado com os avanços tecnológicos. Penso no homem da floresta, acostumado com o silêncio da mata, com o canto dos pássaros ou com a paciência constante do rio que segue seu fluxo rumo ao mar. Penso nos povos da floresta.

Os índios sempre ficam encantados com a agilidade do grande tatu metálico. Lembro de mim mesmo quando cheguei a São Paulo. Ficava muito tempo atrás desse tatu, apenas para observar o caminho que ele fazia.

O tatu da floresta tem uma característica muito interessante: ele corre para sua toca quando se vê acuado pelos seus predadores. É uma forma de escapar ao ataque deles. Mas isso é o instinto de sobrevivência. Quem vive na mata sabe bem lá dentro de si, que não se pode permitir andar desatento, pois corre um sério perigo de não ter amanhã.

O tatu metálico da cidade não tem este medo. É ele que faz o seu caminho, mostra a direção, rasga os trilhos como quem desbrava. É ele que segue levando pessoas para os seus destinos. Alguns sofrem com a sua chegada, outros sofrem com sua partida.

Voltei a pensar no tatu da floresta, que desconhece o próprio destino, mas sabe aonde quer chegar. Pensei também no tempo de antigamente, quando o Tatuapé era um lugar de caça ao tatu. Índios caçadores entravam em sua mata apenas para saber onde estavam as pegadas do animal. Depois eles ficavam à espreita daquele parente, aguardando pacientemente sua manifestação. Nessa hora – quando o tatu saía da toca – eles o pegavam e faziam um suculento assado que iria alimentar os famintos caçadores.

Voltei a pensar no tatu da cidade, que não pode servir de alimento, mas é usando como transporte para a maioria das pessoas poder encontrar seu próprio alimento. Andando no metrô que seguia rumo ao Tatuapé, fiquei mirando os prédios que ele cortava como se fossem árvores gigantes de concreto. Naquele itinerário eu ia buscando algum resquício das antigas civilizações que habitaram aquele vale. Encontrei apenas urubus que sobrevoavam o trem que, por sua vez, cortava o coração da Mãe Terra como uma lâmina afiada. Vi pombos e pombas voando livremente entre as estações. Vi um gavião que voava indiferente por entre os prédios. Não vi nenhum tatu e isso me fez sentir saudades de um tempo em que a natureza imperava nesse pedaço de São Paulo habitado por índios Puris. Senti saudade de um ontem impossível de se tornar hoje novamente.

Pensando nisso deixei o trem me levar entre Itaquera e o Anhangabaú. Precisava levar minha alma ao princípio de tudo.

A crônica em questão foi divulgada nos sites de Ailton Krenak e de Margarida Caetano.


Usando a palavra certa pra doutor não reclamar

Na reflexão anterior falei sobre os equívocos que cercam a palavra índio. Fiz uma provocação e tenho certeza que muitas pessoas, especialmente professores, ficaram com a “pulga atrás da orelha”. Se assim aconteceu, alcancei meu objetivo. A inquietação é já um princípio de mudança. Ficar incomodado com os saberes engessados em nossa mente ao longo dos séculos é uma atitude sábia de quem se percebe parte do todo.

É sabido que esta palavra tem, às vezes, um quê de inocência em quem a usa. Tem quem a utiliza conscientemente também. Sabe que se trata de uma atitude política e fica mais fácil para os interlocutores entenderem do que estão falando. Aliás, esta palavra foi devidamente utilizada pelo movimento indígena no início dos anos 1970. Foi uma forma de mostrar consciência étnica. Antes disso não havia uma consciência pan-indígena por parte dos povos nativos. Eram grupos isolados em suas demandas políticas e sociais. Cada grupo lutava por suas próprias necessidades de sobrevivência. Somente depois que começaram a encontrar os outros grupos durante as famosas assembléias indígenas – patrocinadas pela Igreja católica, através do recém criado Conselho Indigenista Missionário – CIMI – é que as lideranças passaram a ter clareza de que se tratavam de problemas comuns a todos os grupos. A partir disso o termo índio passou a ter uma ressignificação política interessante. Notem, no entanto, que foi um termo usado na relação política com o estado brasileiro. Cada grupo continuou a se chamar pela própria denominação tradicional. Isso não significou abrir mão do jeito próprio de se chamar. Quando muito, chamavam para (sic.) os outros grupos ou pessoas indígenas utilizando o termo parente.

Aqui caberia outra reflexão que deverá vir brevemente. No entanto, devo deixar claro que o termo parente é usado pelos indígenas para todos os seres (vivos ou não-vivos). Chamar alguém de parente é colocá-lo numa rede de relações que se confunde com a própria compreensão cosmológica ancestral. Mesmo na língua portuguesa podemos observar que se trata de uma palavra que une concepções (par+ente) que denota um envolvimento que permite compreendermos que dois ou mais seres se juntam numa rede consangüínea. Do ponto de vista indígena isso vai além da consaguinidade e se insere numa cosmologia cuja crença coloca todos os seres (entes) numa teia de relações. Somente neste contexto é possível compreender a intrínseca relação dos indígenas com a natureza. Isso é, no entanto, assunto para outra conversa.

Até aqui tenho usado outra palavra para referir-me aos povos ancestrais. Ora eu uso nativo, ora indígena. Qual seria a certa? Ambas estão correta (sic.) para referir-se a uma pessoa pertencente ao um
(sic.) povo ancestral. Por incrível que possa parecer não há relação direta entre as palavras índio e indígena, embora o senso comum tenha sempre nos levado a crer nisso. Basta um olhadela (sic.) num bom dicionário que logo se perceberá que há variações em uma e noutra palavra. No duro mesmo os dicionários têm alguma dificuldade em definir com precisão o que seria o termo índio. Quando muito dizem que é como foram chamados os primeiros habitantes do Brasil. Isso, no entanto, não é uma definição é um apelido e apelido é o que se dá para quem parece ser diferente de nós ou ter alguma deficiência que achamos que não temos. Por este caminho veremos que não há conceitos relativo (sic.) ao termo índio, apenas preconceito: selvagem, atrasado, preguiçoso, canibal, estorvo, bugre são alguns deles. E foram estas visões equivocadas que chegaram aos nossos dias com a força da palavra.

Por outro lado o termo indígena significa “aquele que pertence ao lugar”, “originário”, “original do lugar”. Se pode notar, assim, que é muito mais interessante reportar-se a alguém que vem de um povo ancestral pelo termo indígena que índio (sic.). Neste sentido eu sou um indígena Munduruku e com isso quero afirmar meu pertencimento a uma tradição específica com todo o lado positivo e o negativo que essa tradição carrega e deixar claro que a generalização é uma forma grotesca de chamar alguém, pois empobrece a experiência de humanidade que o grupo fez e faz. É desqualificar o modus vivendis dos povos indígenas e isso não é justo e saudável.

Outra palavrinha traiçoeira e corriqueiramente usada para identificar os povos indígenas é tribo. É comum as pessoas me abordarem com a pergunta: qual é sua tribo? Normalmente fico sem jeito e acabo respondendo da maneira tradicional sem muita explicação. Sei que é um conceito entrevado na mente das pessoas e que só vai sair mediante muita explicação por muito tempo.

Afinal, o que tem de errado com a palavra? A antiga ideia de que nossos povos são dependentes de um Povo maior. A palavra tribo está inserida na compreensão de que somos pequenos grupos incapazes de viver sem a intervenção do estado. Ser tribo é estar sob o domínio de um senhor ao qual se deve reverenciar. Observem que essa é a lógica colonial, a lógica do poder, a lógica da dominação. É, portanto, um tratamento jocoso para tão gloriosos povos que deveriam ser tratados com status de nações uma vez que têm autonomia suficiente para viver de forma independente do estado brasileiro. É claro que não é isso que se deseja, mas seria fundamental que ao menos fossem tratados com garbo.

Se não pode chamá-los de tribo, como chamá-los? Povo. É assim que se deveria tratá-los. Um povo tem como característica sua independência política, religiosa, econômica e cultural. Nossa gente indígena tem isso de sobra e ainda que estejamos vivendo “à beira do abismo” trazido pelo contato, podemos afirmar com convicção que somos povos íntegros em sua composição e queremos estar a serviço do Brasil.

Uma última palavra: são os “índios”, brasileiros? Que tal desentortar o pensamento e inverter a pergunta: serão os brasileiros, “índios”? Será que a ordem dos fatores irá alterar o produto? Não saberia dizer, mas o que observo é que há um abismo entre o ser e o não-ser ou entre o não-ser e o ser. Nesse duelo, os indígenas têm levado a pior.

Texto nº 3 (três) da série Mundurukando.

Observações: 1) Trechos em itálico, grifos de Daniel Munduruku; trechos em negrito, grifos nossos. 2) Transcrevemos o artigo da forma como foi publicado no blogue do escritor.


Cabeçalho do blogue do escritor

Bennet Omalu, um gigante

Bennet Omalu é nigeriano e atua na área da saúde nos Estados Unidos. Patologia forense e neuropatologia compreendem suas áreas de atuação no âmbito clínico. Já enquanto pesquisador, Omalu se dedica, por exemplo, a investigar a encefalopatia traumática crônica em esportistas e o transtorno do estresse pós-traumático em militares veteranos1.

Bennet Omalu
Bennet Omalu

Omalu saiu do anonimato quando seus estudos o conduziram à identificação de uma doença, a encefalopatia traumática crônica (ETC). Essa descoberta pôs em evidência danos específicos e gravíssimos à saúde mental de atletas sujeitos a pancadas em suas cabeças enquanto treinando ou jogando – tal como acontece com jogadores de hóquei no gelo e, particularmente, com jogadores de futebol americano. Por temer prejuízos, a liga estadunidense de futebol americano fez o que esteve a seu alcance, no começo deste século 21, para desacreditar Omalu, questionando, publicamente, a validade dos resultados da pesquisa que ele vinha desenvolvendo.

Bennet Omalu e Julian Bailes
Bennet Omalu e Julian Bailes

I think it was an amalgamation of faith and science that made me even to save his brain [Mike Webster’s brain]. I had no reason examining that brain the way I did. I did not know what I was looking for […] Bennet Omalu, fevereiro de 2016.

Os avanços científicos e os percalços sociais divisados por Omalu em decorrência da repercussão de sua descoberta foram registrados por Jeanne Marie Laskas, primeiramente em uma reportagem para revista GQ, e em seguida, em um livro. Eles também serviram de inspiração para um filme concebido por Ridley Scott e dirigido por Peter Landesman, lançado em 2015.

Intitulado “Concussion”, o filme surgiu identificado pelo título “Um homem entre gigantes” no Brasil. Nele, Omalu foi interpretado por Will Smith, que se empenhou na materialização da prosódia do inglês nigeriano, recebendo, dentre outros, o Variety Creative Impact in Acting Award, no Palm Springs International Film Festival de 2016, por sua atuação.

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Omalu não é único imigrante a ser retratado no filme em questão. A narrativa fílmica também nos apresenta a Prema, jovem enfermeira queniana que foi para os Estados Unidos, para dar continuidade a seus estudos. Na “vida real”, o vínculo entre Omalu e Prema se estreitou enquanto ambos frequentavam a mesma igreja. Eles namoraram, casaram-se e hoje têm dois filhos.

Bennet Omalu, Prema Mutiso e seus filhos Mark e Ashly
Bennet Omalu, Prema Mutiso e seus filhos Mark e Ashly

Em “Um homem entre gigantes”, Prema ocupa um espaço secundário e não se menciona sua contribuição para os estudos de Omalu. Ela é interpretada pela inglesa Gugu Mbatha-Raw, que também tem histórias de imigração na família. O pai da atriz, por exemplo, que é próximo dela, é sul-africano e vive na Inglaterra. A própria Gugu tem realizado cada vez mais trabalhos nos Estados Unidos. Em janeiro de 2015, ela vivia em West Hollywood, na Califórnia, e sempre que possível, visitava regiões do entorno que lhe permitissem ter um contato maior com a natureza, tal como acontecia na região em que cresceu2.

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O mais interessante da história de Omalu talvez seja a constatação de que sua idealização dos Estados Unidos não constituiu um entrave para o desenvolvimento de suas pesquisas. O país, é claro, lhe ofereceu a infraestrutura para que sua curiosidade, sua dedicação à ciência e seu compromisso com a integridade humana se conjugassem de forma a permitir que interessados por esportes de alto impacto começassem a praticá-los conscientes dos riscos que correrão – inclusive, este público está cada vez mais perto de poder contar com medidas profiláticas, capazes de amenizar danos cerebrais causados por sua prática esportiva.

Mas a sociedade que primeiro usufruirá desses benefícios é a mesma que a princípio rejeitou modos de pensar, de fazer e de ser que percebeu como alheios e, por isso, como menores. A rejeição a Omalu, tachado como um estrangeiro desrespeitador de um esporte caro aos estadunidenses, e os inúmeros respingos da dificuldade deste povo em reconhecer o mérito de um negro que fez transcender seu campo de atuação, assim, deixando claro sua perícia para atuar na ciência, área que muitos querem ver embranquecida, certamente respondem por vários dos obstáculos enfrentados por Omalu enquanto imigrante, especialmente enquanto alguém que deseja se integrar em uma sociedade que não é originalmente a sua ao mesmo tempo em que procura preservar quem é.

Indiretamente, sua história nos faz pensar no papel a ser desempenhado por sociedades receptoras que desejem ser também acolhedoras, fomentando a aceitação entre pessoas de países diferentes ou provenientes de regiões diferentes de um mesmo país, para que aquilo que as aproxima seja alçado ao primeiro plano de suas vidas. Dez anos depois da publicação do primeiro artigo de Omalu sobre a ETC, uma pesquisa conduzida pelo Departamento de Assuntos dos Veteranos do governo dos Estados Unidos e pela Universidade de Boston encontrou evidências dessa doença em 87 indivíduos de um conjunto de 91 ex-jogadores da liga estadunidense de futebol americano3. Curiosamente, nessa mesma época Omalu dizia acreditar ainda não ter sido aceito pelos Estados Unidos. Para ele, ainda aconteciam coisas em sua vida que o faziam lembrar-se de que era um “outsider”4.

I was naïve. […] There are times I wish I never looked at Mike Webster’s brain. It has dragged me into worldly affairs I do not want to be associated with. Human meanness, wickedness, and selfishness. People trying to cover up, to control how information is released. I started this not knowing I was walking into a minefield. That is my only regret. Bennet Omalu, setembro de 2009.

United Status Sports Academy
Dr. Bennet Omalu recebeu o Dr. Ernst Jokl Sports Medicine Award, em 2016, da Academia de Esportes do Estados Unidos, o maior prêmio dessa academia em Medicina do Esporte. Photo: United States Sports Academy.

Quantas histórias como a de Bennet Omalu precisaremos conhecer para que nos envolvamos com a desconstrução das subalternidades e assumamos a integração de diversos enquanto um gesto sociopolíticopsicocultural com potencial emancipatório? E por que não agora?

Mais informações no site da Edufba.
Mais informações no site da Edufba.

 

“Tio, mi dá só cem”, conto de João Melo

“Tio, mi da só cem” é um conto escrito por João Melo, que nasceu em Luanda, capital de Angola. O escritor já alçou voos para outras partes do mundo, tendo estudado Direito, em Portugal, Jornalismo, no Brasil, e na sequência, retornado a sua terra natal.

Além de migrante estudantil e de produzir literatura, Melo tem trabalhos realizados no campo do jornalismo, do ensino e da política. E seus textos literários já foram traduzidos para línguas como o inglês, o alemão e o mandarim.

João Melo, escritor angolano
João Melo

“Tio, mi da só cem” faz parte do livro Filhos da Pátria, publicado no Brasil, em 2008, pela editora Record. O conto focaliza a infância refugiada com uma linguagem impactante, estimulando uma rediscussão do conceito de refúgio. E nos faz refletir sobre os espaços ocupados pelas crianças migrantes, sobre suas necessidades e sobre como são invisíveis até que se materializem sob os nossos olhos.

O conto está disponível, para leitura, aqui, e nossa agenda de discussão sobre romances que tratam da questão migratória, aqui.

“Tio, mi dá só cem, conto de João Melo

Gostou e quer saber mais sobre crianças migrantes? Veja o post Meninas migrantes superpoderosas, sobre Jaecmar e Yumi, que já enfrentaram o desafio de aprender uma outra língua e de se inserir em nova comunidade escolar depois de terem mudado de país.

Aproveite para compartilhar fragmentos dessas histórias de vida, divulgando o blogue do Leituras dos girassóis para os amigos. Basta compartilhar o link: https://leiturasdosgirassois.wordpress.com

“Farrina”, conto de Cidinha da Silva

Cidinha da Silva é uma escritora brasileira, nascida em Minas Gerais. No campo artístico, sua carreira alicerça-se em torno da produção de crônicas, de contos, de textos dramáticos e de poemas. Mas artigos acadêmicos e textos opinativos também fazem parte de seu portfólio profissional.

Seus textos porejam sua preocupação com a questão racial e, em menor grau, com políticas públicas que atendam à demanda nacional de formação de leitores. Em “Um Exu em Nova Iorque”, seu livro mais recente, o leitor é posto em contato com elementos culturais que resultam de vivências da diáspora africana. Dele faz parte o conto “Farrina”, que enfoca a migração de caribenhos negros para os Estados Unidos e a migração interna neste país.


Posso dizer que a Outra que sou, o Outro que somos em sociedades hierarquicamente racializadas como a brasileira, me interessa muito e, de maneira consciente, procuro nos apresentar de maneira digna, seja em personagens que construo, seja no enredo e na linguagem. 
Cidinha da Silva


Cidinha da Silva

Exu é o comunicador por excelência, portanto o considero meu padrinho no ato de escrever, pois escrevo para me comunicar com o mundo, para transitar entre mundos, para revelar mundos e construir novos mundos. Essa atividade é essencialmente exúnica. 
Cidinha da Silva