O uruguaio Horacio Quiroga viveu grande parte de sua vida em Misiones, província argentina que faz fronteira com Paraguai e Brasil. Para Figliolo, esta foi sua forma de deixar para trás fracassos enfrentados na zona urbana. Por exemplo, em Montevidéu, onde matou acidentalmente um amigo; e em Paris, onde viveu por alguns meses à míngua.
Misiones detém certo protagonismo na literatura produzida por Quiroga, onde reconhecemos a selva, seus habitantes e a língua espanhola, coadjuvada pelo portunhol e pelo guarani [01, 02, 03]. Mas foi ao Uruguai que o escritor julgou pertencer durante uma viagem à Paris. “Turistar” permitiu-lhe, afinal, refletir sobre o peso dos deslocamentos1 e, inclusive, revisar seu conceito de pátria2.
O lugar pátrio de Quiroga privilegia o estado de bem-estar pessoal, em detrimento de naturalidade ou genealogia. Formula-se, ademais, fazendo uso de um recurso inacessível aos protagonistas de “Os imigrantes”, desde o princípio privados de parâmetros comparativos. Neste conto, um homem e sua esposa grávida rumam a outro continente. Marcham empurrados pela insustentabilidade de sua terra natal, confiantes na posterior reunificação da família.
Acompanhando a jornada do casal de “Os imigrantes”, penso no efeito que os estabelecidos têm sobre aqueles que migram. Reconheço o medo do diferente e o egoísmo que tumultuam travessias infiltradas de esperança e, também, a solidariedade que nutre e quase atenua pesadelos. Então me alinho aos solidários, torcendo para que nossas ações formulem um mundo mais intercultural e humano.
1 “Custa muito fazer uma viagem, mesmo que a distância que percorremos seja pequena. O princípio da inércia parece refletir-se no cérebro e se sofre com a tradução dos pontos de vista afetivos. E quando nos afastamos por muito tempo, longe, muito longe, o espírito sente o abalo de um pressentimento que nos afoga. É uma pena abandonar a cidade em que se viveu, os amigos, os costumes, os horizontes, a família, os céus […].” (QUIROGA, 1950, p. 45, tradução minha).
¹ “Cuesta mucho hacer un viaje, aunque la distancia a que nos alejemos sea corta. El principio de inercia parece retratarse en el cerebro, y se sufre con la traslación de los puntos de mira afectivos. Y cuando nos alejamos por mucho tiempo, lejos, muy lejos, el espíritu siente la sacudida de un presentimiento que nos ahoga. Es pena abandonar la ciudad en que se ha vivido, los amigos, las costumbres, los horizontes, la familia, los cielos […].” (QUIROGA, 1950, p. 45).
2 Quanto a Paris, será muito divertido, mas eu me chateio. A verdade é que não tenho dinheiro, o que atrapalha minha diversão. De todo modo, é bela aquela cidade em que uma pessoa se diverte, quer seja Paris ou Salto. Um poeta grego decadentista disse: “A pátria está onde se vive bem.” É um ótimo pensamento. Por que dizer que não há lugar como Paris se não me divirto aí? Que aqueles que gostam dela aproveitem-na, mas eu não tenho nenhuma razão para isso; e, na verdade, estou dizendo que Montevidéu é melhor do que Paris, porque ali eu me sinto bem, que Salto é melhor do que Paris, porque ali eu me divirto mais. Que importa que outros digam o contrário, porque ali se sentiram bem? Cada um vive a vida que é possível; e o caçador que vive em sua floresta e o camponês que gosta de sua espingarda e de seus sóis tem razão quando dizem que a montanha ou o povoado é melhor do que Paris. O que devemos dizer em face disto? Divirta-se enquanto é tempo, esteja onde estiver. O lugar que nos viu felizes e alegres é o melhor de todos. Em Paris, se divertem os outros; eu em Salto me divirto. Direi, portanto, que isto é melhor do que aquilo? Seria uma estupidez (QUIROGA, 1950, p. 102, tradução minha).
² En cuanto á París, será muy divertido pero yo me aburro. Verdad que no tengo dinero, lo que es algo para no divertirse. De todos modos, es hermosa ciudad aquella en que uno se divierte, ya se llame París o Salto. Un poeta griego de la decadencia, dijo : “La patria está donde se vive bien”. Es un gran pensamiento. ¿Por qué he de decir yo que no hay como París, si no me divierto? Quédense en buena hora con él los que gozan; pero yo no tengo ninguna razón para eso, y estoy en lo verdadero diciendo que Montevideo es mejor que París, porque allí lo paso bien; que el Salto es mejor que París, porque allí me divierto más. ¿Qué da que otros digan lo contrario, / porque aquí lo han pasado bien?. Cada cual vive la vida que le es posible; y el cazador que vive en su bosque, el rural que goza con su escopeta y sus soles, tiene razón cuando afirma que el monte ó el pueblo es mejor que París. ¿Qué tenemos que decir á eso? Gócece en buena hora, ya sea donde sea. El lugar que nos ha visto felices y contentos, es el mejor de todos. En París se divierten los demás; yo en Salto. ¿Diré por lo tanto que esto es mejor que aquello? Sería una estupidez (QUIROGA, 1950, p. 102)
João é brasileiro, Juan é mexicano. Os dois vivem nos Estados Unidos apesar de não terem autorização para residir ou trabalhar no país. A aposta em um futuro melhor uniu-os na condução de serviços de manutenção em uma fazenda que abriga animais abusados. Desafiados pela necessidade de lidar com uma língua estrangeira, com valores referentes à interação de animais humanos e não-humanos com os quais não estão familiarizados e, ainda, pela necessidade de confiar em conhecidos, dão vida ao conto “O santuário”, de Regina Rheda, para nos lembrar que gestos que acolhem podem abrir caminhos imprevistos, marcados, inclusive, por ganhos mútuos para os envolvidos.
Rheda também ultrapassou as fronteiras brasileiras, tendo assumido um percurso que a levou de Santa Cruz do Rio Pardo (SP) à capital paulista, e daí à Flórida e à Califórnia, nos Estados Unidos. Formada em Cinema, trabalhou nesta área e com outros tipos de produção audiovisual até decidir enveredar pela literatura, onde teve uma estreia bem-sucedida, considerando-se que “Arca sem Noé: Histórias do Edifício Copan”, seu primeiro livro, foi agraciado com o Prêmio Jabuti – na categoria “Contos” – em 1994, além de ter sido objeto de uma segunda edição, publicada pela editora Record em 2010.
Atenta às técnicas que emprega na elaboração de seus textos literários, adepta do humor e da ironia, em particular, para a construção de efeitos de sentido, Rheda adicionou um ingrediente novo à sua escrita desde que passou a se identificar com o veganismo e com sua vertente abolicionista. Desde o começo deste século, a escritora tem trabalhado literariamente o tema dos direitos dos animais. Seu romance “Humana festa” (2018), por exemplo, é considerado pioneiro por tematizar o veganismo ao mesmo tempo em que alude a questões fundamentais, como o feminismo e a reforma agrária. Rheda também tem elaborado traduções autorizadas de textos de Gary Francione, professor da área de Direito que repudia a exploração de animais não-humanos por humanos. E assim contribui para a disseminação dessas ideias no espaço lusófono.
Interessados em ir além da leitura de “O santuário”, encontrarão online o conto “Falta d’água”, além de entrevistas interessantíssimas em que Rheda trata do fazer literário, de ativismo (1) e (2) e de sua relação com o Copan, onde morou. O burburinho resultante da recepção dos contos que têm o prédio como personagem pode ser acompanhado aqui e aqui. Já seus livros são mais facilmente encontrados em sebos ou em formato e-book.
“A gente tem que ter mais empatia, e não ficar fazendo com que, cada vez mais, o fulano sinta que não pertence àquele lugar.” “We have to have more empathy. And do not make our [migrant] neighbor fell that he does not belong to the place he is.” (Patrick Melo)
As nossas enormes pantufas tinham orelhas, bocas e dentes
para que desbravássemos o chão, a casa e os pais
e suportássemos com um leão nos dedos o frio português
As pantufas vendem-se no supermercado, são para crianças
(porque os adultos, alguém disse, parecem ridículos com elas)
e o seu preço sobe ou desce a partir do quão exótico o animal é.
Mas nem todas as pantufas têm a forma de um animal, exótico ou não,
e nem todas as crianças têm pantufas, com a forma de um animal ou não.
Nós tivemos um par cada um, cuidámo-lo, crescemos e esquecemo-lo
como esquecemos o conforto do nosso país, da casa e dos pais
por agora desbravarmos outras terras e outros idiomas, estrangeiros,
tu e eu sem um leão nos dedos, com algum azar, solidão e brio.
II
Pantufa vem do francês pantoufle; em inglês diz-se slipper
(do verbo to slip, e lembra slippering, que é um castigo
a chicotadas, reguadas ou chineladas. Atroz, absoluto).
Pantufla, do espanhol, tem entre as fonéticas a mais cheia
e confortável: como devem ser de resto as próprias pantufas
inventadas ninguém sabe ao certo por quem nem quando
e onde. Este, Oeste, século XII. Regalia certamente de poucos
cobiçada talvez por alguns e desconhecida de muitos, a pantufa
mais antiga do que o astrolábio, existe há tanto tempo como a bússola
e há quase tanto tempo como a ambulância. A pantufa não consta
entre os objetos que se levariam hipoteticamente para uma ilha deserta.
A pantufa não salva nem alimenta. Aquece. E como qualquer objeto
III
foi adquirindo ao longo do tempo novas funções e feitios. No século XXI
a pantufa é usada nos desertos dos Estados Unidos: El Paso, Arizona
ou San Diego. Feita à medida de todos os sapatos indocumentados
a pantufa, vendida por mexicanos a mexicanos, cobre as pegadas
dos que, numa mão, carregam os filhos e na outra a garrafa de água.
A garrafa de água, forrada com fita-cola, afasta o sol; evita também o reflexo
do sol no plástico e o disparo de uma AR-15. Não parecem ridículos
os indocumentados ao longo da fronteira. A pantufa, maciça e multiplicada
prediz o número de corpos desaparecidos. As famílias dos mortos jamais
recebem de volta as pantufas. Há por isso quem, além das garrafas forradas
colecione pantufas perto de onde os indocumentados e as indocumentadas tombam.
O debate entre os artistas estadunidenses que trabalham com pantufas e garrafas
é essencialmente estético e inútil: limpar ou não a pantufa antes de colocá-la
no museu? Mas não há nenhuma estética na pantufa, maciça e multiplicada
ao longo da fronteira nos pés dos indocumentados. Não há estética onde não há Deus.
Patrícia Lino é poetisa, artista visual, professora e pesquisadora. Nascida no Porto, em Portugal, hoje trabalha em Los Angeles (EUA), no Departamento de Espanhol e Português da University of California. Se você se interessa por processos autorais, verifique a entrevista que ela concedeu ao blog “Como eu escrevo”, em 2019. Para vê-la como entrevistadora, leia a conversa que teve com os quadrinistas Gabriel Bá e Fábio Moon em 2018, publicada na revista eletrônica Latin American Literature Today.
Para conhecer mais de sua poesia, cabe tanto uma visita ao blogue Études Lusophones, que conta com textos selecionados pelo professor, investigador e escritor Leonardo Tonus, como perscrutar o próprio site da poetisa. A propósito, seu extenso e diversificado currículo pode ser encontrado por lá, ao lado de (fragmentos de) seus textos. Veja, por exemplo, “Amor” e “Oração”.
Finalmente, em um perfil de Lino em uma rede social, encontramos uma versão audiovisual de “A pantufa”. Descobrimos assim que o poema foi traduzido para o espanhol por Álvaro Cortés, que está organizando uma coletânea de poemas de Lino. O vídeo, com os versos declamados nesta língua, merece ser visto tanto quanto o poema lido. Constituem um convite à reflexão.
Se você chegou até aqui, pode querer aproveitar a oportunidade para ler o poema “Palavras onde me perco”, de Avelina da Silveira, poetisa e artista visual, assim como Lino. Depois de examinar esses textos, veja se há alguma similaridade. E fique à vontade para registrar suas impressões na seção de comentários.
Rumamos a Dortmund, na Alemanha, para conhecer uma iniciativa da Oxalá Editora, que se dedica à descoberta e à publicação de escritores portugueses emigrados. Referimo-nos à publicação, em 2018, do livro “Contos da Emigração: Homens que sofrem de sonhos”. No site da editora, encontramos uma entrevista do responsável pelo projeto, o jornalista (?) Mário dos Santos, conduzida por Nuno Gomes Garcia, autor de um dos textos da coletânea. Abaixo, ela surge acompanhada por outra, do próprio Nuno, em que ele comenta sobre o texto que escreveu.
Nuno Gomes Garcia conversa com Mário
Dos Santos
«Contos da emigração: Homens que
sofrem de sonhos» é o mais recente livro, uma coletânea de 12 contos,
idealizado por Mário dos Santos, fundador e editor da Oxalá Editora, uma
chancela orientada para a Diáspora. Os direitos da obra reverterão em favor da
Plataforma de Apoio aos Refugiados.
Sediada em Dortmund, na Alemanha,
a Oxalá Editora tem por objetivo fazer chegar a voz dos 5 milhões de
Portugueses que vivem dispersos pelo estrangeiro aos 10 milhões de Portugueses
que vivem em Portugal, distribuindo, para esse efeito, os livros tanto dentro como
fora de Portugal.
Este livro, que mistura dois
autores clássicos portugueses – Eça de Queirós e José Rodrigues Miguéis – com
dez autores contemporâneos (nove dos quais expatriados), explora os caminhos da
emigração, tanto os da década de 1960 como os mais recentes que datam do
período da crise pós-2008.
Uma obra rica, que se alicerça na
variedade de registo de cada autor – alguns deles já consagrados -, indo desde
a ruralidade do interior português à urbanidade londrina ou alemã; do drama à
sátira, explorando o momento do «salto», a dolorosa adaptação a diferentes
culturas e idiomas, passando pela discriminação e a segregação sofridas na
terra de acolhimento ou, o reverso da medalha, pelos surtos xenófobos e
racistas contra outras comunidades, preconceitos extremistas que alguns
emigrantes portugueses também partilham.
Mário, antes de nos debruçarmos
sobre o livro, falemos um pouco do teu percurso. Tu fundaste o Portugal Post,
um jornal mensal publicado na Alemanha em língua portuguesa, e há pouco decidiste
dedicar-te inteiramente à Oxalá Editora. O que é que te levou a mudar de rumo?
Sim, de facto, estive à frente do
jornal durante 25 anos. Achei que ao fim desses anos seria o momento de passar
a pasta, digamos assim, a alguém que desse continuidade a um jornal com
história e muito importante para a vida da Comunidade na Alemanha. Durante o
meu percurso no jornal, houve ocasiões em que pessoas se me dirigiam dizendo
que tinham coisas escritas (poesia, contos, histórias da sua vida…) na gaveta e
que gostariam de as verem publicadas. Algumas dessas pessoas viviam na
Alemanha, mas também havia gente de outros países que me diziam que gostariam
de ver os seus escritos publicados e me desafiavam para o fazer. Percebi então
que fazia sentido uma editora vocacionada para os autores da Diáspora. Em 2015,
decidi criar a Oxalá Editora pensando já que daí a pouco tempo entraria no gozo
da reforma e que esse seria um tempo para me dedicar àquilo de que sempre
gostei, os livros.
A editora que também tem edições
bilingues, em português e em alemão, veio de facto preencher um vazio que era
evidente. Como editor, qual é o teu principal objetivo: fazer chegar a voz da
diáspora a Portugal ou promover a literatura portuguesa na Alemanha?
Sim, há edições bilingues. Gostaria
de destacar a tradução para alemão da obra de Sophia de Melo Andresen, «A
menina do mar». Mas a minha principal preocupação são os autores que vivem no
exterior, ou seja, a Oxalá Editora não se remete apenas à Alemanha. Há,
inclusivamente, propostas de parceria provenientes de outros países. A ideia é
ter uma casa editora que perceba a realidade da Diáspora. Sabes tão bem como eu
que em Portugal não se dá a devida importância aos Portugueses que vivem no
estrangeiro, sejam eles poetas ou carpinteiros; cientistas ou concierge… Mas
também é verdade que hoje se considera mais «quem vive lá fora», apesar dos
preconceitos face aos emigrantes. O meu objetivo é descobrir bons autores da
Diáspora, vivam eles nas Américas, na Europa ou seja lá onde for, publicá-los e
divulgá-los em Portugal. Muitos têm, digamos assim, esse sonho, o de serem
reconhecidos, não só nas Comunidades onde vivem, mas também, por questões
sentimentais, de ligação ao país, a Portugal, onde gostariam de ver os seus
livros a circular. Isso é um pouco difícil, sabemos. Quer dizer, nalguns casos
até não é tão difícil assim.
Falemos do livro, então, que tem
um título que resume em poucas palavras a essência do que é ser emigrante. Mas
diz-nos quais os escritores que participam na coletânea. Vivem todos fora de
Portugal?
Com a exceção da Ana Cristina
Silva, todos os outros vivem fora de Portugal. Eu convidei-a porque ela tem uma
crónica no Portugal Post.
E a Oxalá também publicou «A
mulher transparente», um dos romances da Ana Cristina Silva.
Exatamente. Os outros autores vêm
do Reino Unido, de França e da Alemanha. A minha preocupação foi juntar autores
que vivem e sentem a diáspora e, olhando para quem pudesse representar, digamos
assim, o espírito do livro, convidei a Gabriela Ruivo Trindade, vendedora do
prémio Leya e que vive em Londres. Falei ao Nuno Gomes Garcia, ou seja,
contigo, também com obra publicada e reconhecida. Falei ainda com uma autora
que vive em Hamburgo, a Cristina Torrão, e com o Miguel Szymanski, um autor que
tem a particularidade de se sentir emigrante alemão em Portugal e emigrante
português na Alemanha. Mas o livro vale por todas as histórias lavradas pela
caneta e no sentir do que é estar distante de Portugal.
Os contos são todos inéditos?
Sim, os contos dos autores vivos
são todos inéditos.
E por que razão optaste por
juntar a voz de dois clássicos da literatura à voz de dez escritores
contemporâneos?
Só para tentar dizer que também
os escritores clássicos viveram fora do país. Eles foram tão emigrantes como
nós. Muita da obra do José Rodrigues Miguéis, por exemplo, incide sobre
temáticas da emigração. E o Eça de Queirós…
O Eça foi Cônsul em Paris.
Sim, foi, de certa forma,
emigrante, tendo falecido em Paris, como se sabe. Essa ideia surgiu-me assim
muito espontânea. Mostrar que os problemas da emigração são muito parecidos
independentemente da época. O que eu espero é que as pessoas que leiam este
livro se apercebam que mesmo autores que ficaram na História da Literatura
viveram as situações que os emigrantes de hoje vivem.
Esperas uma boa receção da obra
por parte do público português?
A obra também vai ser distribuída
em Portugal pela Europress, a empresa distribuidora com a qual a Oxalá
colabora. E na Diáspora, temos contactos com algumas livrarias e vamos também
fazer a promoção da obra em muitos países e em quase todos os continentes. A
recepção e a aceitação que o livro dependerá de muitos fatores. Mas o que posso
desde já dizer é que vale a pena ler este livro para melhor perceber os Portugueses
das sete partidas do mundo.
Mário, para terminarmos, fala-nos
de um livro de que tenhas gostado.
Assim de repente, sugiro o Primo
Levi.
Qual? O “Se isto é um homem?”
Exatamente! As pessoas que vivem
no nosso tempo deveriam ler esse livro, que retrata o sofrimento das vítimas do
Holocausto, num momento em que os governantes dos grandes países amedrontam o
mundo com discursos belicistas e perigosos para a humanidade.
Os contos da coletânea:
«A salto» de Ana Cristina Silva
«Vida adiadas» de Cristina Torrão
«Um poeta Lírico» de Eça de Queirós
«Cab driver» de Gabriela Ruivo Trindade
«O apelo do vale» de Isabel Mateus
«O viajante clandestino» de José Rodrigues Miguéis
Cap Magellan: Como acolheste o convite que te foi feito para
participares na coletânea?
Nuno Gomes Garcia: Pensei imediatamente que era por uma boa causa. Não apenas porque
os direitos revertem a favor da Plataforma de Apoio aos Refugiados, mas também
por permitir a bons autores, quase todos expatriados, escreverem sobre um tema
que inexplicavelmente é pouco tratado na literatura contemporânea portuguesa: a
emigração. Um país que possui um terço dos seus cidadãos a viver fora do
território português e que finge que a emigração não é uma componente
estrutural da sua sociedade há mais de 500 anos está condenado a ser um país
que não se compreende a ele próprio. Se Portugal tem 5 dos seus 15 milhões de
nacionais a viver no estrangeiro, esse facto tem de se refletir
obrigatoriamente na sua matriz cultural, nomeadamente na literatura.
CM: Porquê utilizar a metáfora dos legumes?
NGG: A minha escrita, acho que é visível em todos os romances que escrevi, leva-me sempre a expor as minhas inquietudes através da sátira e do “tremendismo”, no exagero. Ora, uma das coisas que mais me inquieta hoje na Europa é o regresso às questões identitárias, o recrudescimento dos nacionalismos protofascistas presentes em alguns governos e de outros componentes abertamente fascistas em algumas franjas da sociedade.
Como, a meu ver, não existe nada de mais ridículo, mesmo do ponto de vista da comicidade e do humor, do que um certo povo se sentir superior a outro, ou do que um ser humano odiar outro ser humano por causa da cor da sua pele, por exemplo… tendo isso em vista, eu tentei fazer a experiência de transportar toda essa problemática para o mundo dos vegetais.
Só para que o leitor compreenda que ver uma cenoura a odiar uma
beterraba, ambas antropomorfizadas, por causa da cor da sua “casca” é tão
absurdo como um humano odiar outro humano por causa da cor da sua pele, da
religião ou da orientação sexual.
CM: A emigração é somente feita de mulheres e homens que sofrem de
sonhos? Não achas que pode ser um pouco miserabilista como forma de apresentar
a emigração?
NGG: Não creio que se possa reduzir os dez contos ao título da
coletânea, que é por natureza subjetivo e que tem um certo pendor poético. O
livro contém dez maneiras diferentes de olhar para o fenómeno da emigração. Dez
contos que mostram as complexidades ligadas ao simples facto de trocar uma
realidade social por outra. Se há emigrantes que realizam os seus sonhos,
outros há que vivem autênticos pesadelos. O sofrimento, tal como as alegrias,
são sentimentos inerentes à vida, logo também inerentes à emigração.
Lina Meruane é a autora do romance “Sangue no olho”, texto discutido no 7º encontro do Leituras dos Girassóis. O livro, que cativou os membros do clube, aterrissou no Brasil como resultado da intervenção de Livia Deorsola, editora brasileira especializada em literatura hispano-americana. Sob os seus cuidados, a extinta editora Cosac Naify publicou a primeira edição do texto que, em 2018, entrava para o catálogo da SESI-SP editora, assim permanecendo ao alcance do público brasileiro.
Meruane
nasceu no Chile e tem ascendentes palestinos. Vive hoje nos Estados Unidos, a
partir de onde concilia sua atuação no campo da literatura com a carreira de
professora universitária.
Como toda leitora, tem seus livros prediletos – veja aqui e aqui. Enquanto alguém envolvida com a produção e o ensino de literatura latino-americana, tem escritores brasileiros sob o radar, como Clarice Lispector, que é ucraniana de nascimento, e Nélida Piñon, a imortal filha de espanhóis. Da primeira, Meruane se dedicou a analisar o conto “Legião estrangeira”. À segunda, fez referência em seu ensaio “Contra os filhos”, lançado no Brasil pela editora todavia, texto lido e comentado por escritores como Tércia Montenegro, Maria Clara Drummond e Sérgio Tavares.
A seguir listamos algumas das entrevistas concedidas por Meruane, aproveitando para destacar trechos que tratam de sua relação com a América Latina, de como entende a literatura, de seu romance “Sangue no olho” e, finalmente, de como se percebe. Como incentivo à leitura, ressaltamos que “Sangue no olho” é um ótimo romance. E que mesmo nas ocasiões em que o entrevistador não esteve à altura da tarefa, as considerações de Meruane acrescentam, nos instigando, portanto, a procurar por seus escritos e a demandar por mais traduções deles.
Vejamos:
Sobre a relação da Lina migrante com a América
Latina:
Você mora nos EUA há anos. Você se enxerga mais
próxima da literatura latino-americana ou da tradição norte-americana?
Sempre prestei muita atenção à produção literária da América Latina, e me mudei para Nova York para fazer um doutorado em literatura latino-americana. Essa é, portanto, a tradição que conheço melhor, e com a qual continuo dialogando. Leio certos autores norte-americanos (e vejo suas peças e seus filmes), mas não mais do que os europeus de modo geral, e com certeza leio menos norte-americanos do que franceses. Mas não importa tanto o lugar de onde se escreve: o que me interessa em um autor não é seu local de origem e sim a sua maneira de entender o literário, o modo de escrever, sua relação com certas tradições. Para mim, Faulkner é tão grande quanto Beckett, Woolf como Gertrude Stein, Mishima como Celine etc. No contemporâneo os temas e os ecos da literatura de nosso continente ressoam mais em mim, e minha escrita se articula com e certamente contra essa tradição. (1)
Como marca sua literatura o
fato de viver fora de seu país?
A maneira que eu percebo é um pouco distinta da sua, eu vejo os escritores do meu tempo se movendo em muitas direções e para destinos distintos. Há um dinamismo não tão simples de ser traçado nem geográfica nem historicamente… Eu pertenço a uma família de migrantes; está na minha tradição estar inscrita no nomadismo e um tema recorrente quando nos encontramos é… a situação de nossas malas! Há sempre uma maleta ao redor da conversa e também, isso percebi muito depois, em meus romances. Sempre a protagonista está viajando, e a distância lhe permite ver o que deixa de maneira crítica. É como se as protagonistas de meus romances precisassem ver de longe para ver bem. (2)
Cortázar declarou que um dia se deu conta que ser um escritor latino-americano significava fundamentalmente que havia de ser um latino-americano escritor: havia de inverter os termos e a condição de latino-americano, e colocar isso também no trabalho literário. Como é ter o papel de uma escritora chilena em Nova York?
Cortázar foi, durante anos, um escritor cem por cento argentino e teve que se converter em latino-americano como acontece com muitos de nós quando vivemos no exterior. Do exterior, o impulso para juntarmos todos em um mesmo saco latino-americano é muito forte, simplifica as coordenadas e anula as diferenças, permite as generalizações. Eu continuo me sentindo uma escritora chilena, e reivindico acima de tudo política e solidariamente a minha latino-americanidade, mas estou permanentemente sub-estimando o fato de que há muita disparidade interna, não somente entre os países como também entre classes e etnias, verdadeiras batalhas silenciosas às quais se deve prestar atenção. Eu gostaria de acreditar que o que posso fazer neste território é ampliar um pouco os espaços da literatura latino-americana através do ensino das nossas culturas e literaturas, ou pelas conversas sobre livros maravilhosos produzidos em pontos diversos do continente e por escritores que sendo latino-americanos vivem no exterior, e também apoiando a possibilidade de que continuem falando as nossas diversas línguas nos Estados Unidos ao invés de passarmos todos à língua dominante. (3)
Sobre a literatura:
Há na literatura alguma ponte de salvação?
[…] O que penso é que a missão da literatura não é a da mobilização e, nem sequer, a da empatia com o outro: são efeitos desejáveis mas esta não é a sua missão, porque se a literatura se dedica a isso acaba se tornando propaganda com a pretensão de convencer. A literatura deve colocar perguntas e não resolvê-las, deve nos levar a pensar inclusive em questões contraditórias, deve nos levar a aprofundar sobre os conflitos humanos. Assim algo pode acontecer mas este algo profundo é raramente imediato: é um efeito a longo prazo e nunca, a salvação. (3)
Precisamente, todo o romance está imerso em debates éticos. Qual é o
limite ético da literatura?
Eu queria dizer algo que fosse muito ético, mas lamentavelmente não vejo limites éticos dentro da literatura. Se quisermos ver cara a cara a monstruosidade que somos, há que se mostrar precisamente esses lugares onde toda a ética foi perdida, há que insistir nessas zonas escuras, ambíguas, remexer nesses limites incômodos, às vezes intoleráveis. Talvez aí se possa extrair, por oposição, uma ética, e um escritor ou escritora esperaria que essa tarefa cumpram os leitores: a de reagir ante o que se lê, a de refletir de maneira mais complexa sobre o que se coloca, a de se propor a participar eticamente, desde essa terrível claridade, do cenário social. (2)
Sobre o romance “Sangue no olho”:
Sangue no olho é sua primeira obra publicada no Brasil.
Como ela se relaciona com o restante de sua obra ainda inédita em português?
Todos os meus livros, penso, são diferentes; cada um foi respondendo, ou tentando responder, a uma pergunta que, no momento, era urgente. Comecei trabalhando no território da infância feminina, examinando as maneiras como as meninas são educadas para serem mulheres, o disciplinamento feroz pelo qual passamos: eu estava interessada em mostrar essa zona obscura e indisciplinada da infância. Nisto se encaixam os meus três primeiros livros escritos no Chile, e talvez não seja tão estranho o fato de que eu os escrevi neste país, pois a disciplina também faz parte da ditadura na qual cresci. A saída do Chile há quinze anos introduziu novos cenários (Chile e Estados Unidos como paisagens distintas, mas também como vasos comunicantes. Bem ou mal, o meu país foi um laboratório de experimentos neoliberais dos anos oitenta) e novos temas, o que você mencionou antes, o da doença. Talvez o que todos os meus livros tenham em comum é que no centro há o corpo de uma mulher que resiste a certas normas, que leva as lógicas imperantes a extremos que podem ser prazerosos e redentores, mas também sinistros. (1)
Caso houvesse uma inversão de papéis
em Sangue no olho e fosse a protagonista que cuidasse do outro, como
seria? As mulheres se veem em posição mais vulnerável quando acometidas por uma
doença, ou o gênero não importa?
O gênero importa muito. Historicamente, as mulheres prezam o sacrifício como um valor: a mãe deve se sacrificar por seu filho, o pai contribui; a esposa se sacrifica pelo marido mas não deve esperar o mesmo de volta; a filha se sacrifica pelos pais e, sobretudo, pela mãe porque lhes deve a vida enquanto seus irmãos se apoiam nela… Isso está poderosamente inscrito na cultura e se reforça o tempo todo através de discursos múltiplos sociais. Quando as mães conseguem dizer não aos pedidos de seus filhos sem sentirem culpa ou serem culpadas? Quando, na intimidade de um casal, a mulher logra colocar as suas necessidades acima da dos outros como quase sempre fazem os outros? Não são as filhas que se encarregam de cuidar dos pais idosos mais frequentemente? Não digo que sempre seja assim, o que digo é que custa mais às mulheres deixarem de agir assim porque foram educadas para servir e para sentir que os seus desejos e talentos possuam menos valor. Isso segue sendo assim e é difícil enxergar. Quando tenho alguma dúvida na minha vida pessoal, sempre, como regra, inverto a situação e penso no contrário: o que fariam o meu parceiro, o meu irmão, o meu pai ou o que faria nesta situação se eu fosse um homem? Não é que queira ser um homem, isso nem me passa pela cabeça. Nada mais é do que um exercício que me permite ver até que ponto obedeço ao chamado de uma regra cultural retrógrada e reajo a um desejo. Para não me prolongar, foi isso precisamente o que fiz ao escrever o meu romance, dar uma volta na relação do gênero e ver a situação clássica desde a sua inversão. Acredito que o que surpreende aos leitores é precisamente esta inversão: aí se enxerga as coisas muito melhor, e elas assustam muito mais. (3)
Tu último libro, Sangre en el ojo, fue
publicado en distintos países de Europa como Francia, Alemania, Reino Unido,
Italia y Holanda. ¿Cuáles crees que son las principales diferencias entre la
recepción de tu obra en Europa y en América Latina?
Es difícil saber, yo no ando a la caza de las reseñas de mis libros pero mi impresión es que no hay una distinción clara entre Europa y América Latina, ese trazo continental es demasiado grueso. Hay muchas diferencias culturales e ideológicas y expectativas literarias entre los países de Europa así como entre los países americanos. Y además, en cada uno de esos lugares hay importantes diferencias de género, clase y raza, que se reflejan en la lectura, entonces no lo sé. Solo anecdóticamente te puedo comentar que mientras que en Chile nadie leyó el contenido político de mi novela, en Italia no dejaron de reparar en los escasos momentos en que se comenta la relación entre cuerpo enfermo y dictadura, y mientras en Brasil algunos lectores celebraron la escena sexual en el avión, nadie más dijo nada, al menos que yo sepa sobre esto. Y en las sucesivas presentaciones de mi libro, hay lugares donde el público percibe el humor negro del libro y otros donde la respuesta es sería y acongojada. (4)
A protagonista disse em
uma conversa com sua professora que só há um escritor cego. Imagino que tenha
pensado em Borges, mas há na literatura ocidental certa corrente da literatura
da cegueira. Você pensou nessa questão quando escrevia o livro?
Era Borges a figura, com efeito, porque a cegueira de Borges é única. Borges fica cego aos 50 anos, no momento em que começa a ser internacionalmente reconhecido, e fotografado. O rosto de Borges, com a vida perdida, com suas mãos de sábio sobre a bengala, é uma imagem icônica, indelével. É o grande cego da nossa literatura contemporânea. Não é que Lucina não saiba de Homero, de Milton, de Joyce. Então, o que ela quer dizer é que o grande, o contemporâneo, o cego terminal que os latino-americanos recordam é Borges. Por isso você adivinha. (2)
Foi influenciada por
algum livro específico de um escritor cego (Borges é uma referência clara), ou
sobre a cegueira de modo mais amplo?
[…] Eu tinha lido os livros mais canônicos da cegueira latino-americana, como “Sobre heróis e tumbas”, de Ernesto Sabato, e esse fabuloso conto de Clarice Lispector chamado “Amor”, mas meu romance não surge dessas leituras específicas, e sim da literatura da enfermidade, que enfrentei enquanto escrevia minha tese de doutorado. (5)
Sobre Lina Meruane:
En tus obras queda en evidencia el papel de la lectura, del ejercicio de la escritura, pero también el de las redes intelectuales y el de los afectos que se forman entre escritores, académicos e investigadores. ¿Se podría decir que el escritor contemporáneo ya no escribe aislado del mundo? ¿Cuál sería el lugar de la escritura y lectura en tu cotidianidad?
Pienso que hay muchas maneras de ser escritor; por resumir un poco y generalizar otro poco, diría que hay tres posiciones. Una es la del quien se plantea el aislamiento, el silencio, el bajo perfil que a veces es una decisión literaria y otras responde a la timidez o a la fobia social. Otra es la de quien piensa la escritura como plataforma mediática para obtener un estatus de celebridad, ahí hay mucha sobrexposición que puede acabar por distorsionar la propia escritura al volverla un medio para lograr un fin de orden publicitario. Ese es el lugar más peligroso y entre los dos extremos yo valoro más el del retraimiento de quien escribe por una necesidad íntima. Lo que me pasa a mí es que aunque necesito mucho silencio y tiempo para escribir, soy un animal social. Me da curiosidad la gente, me atrae hablar con gente y escucharla, y por supuesto me disgusta a ratos pero hay algo que me importa en el diálogo y en la discusión. Por eso formo redes, por eso presento mis libros, me importa la sala de clases donde la lectura, la escritura y la reflexión provocan algo fresco, por eso escribo ensayos que pretenden interpelar y columnas de opinión (aunque muy pocas ahora porque cansa mucho esa búsqueda de nuevos temas e ideas, yo no tengo tantas ideas, me conformo con tener unas poquitas, necesito tiempo para reflexionar y posicionarme en lo que ocurre cotidianamente). Todo eso es el espacio donde ocurre lo político y eso para mí es central en mi obra y en mi vida de los afectos. (4)
Ao
discutir Ensaio sobre a cegueira, José Saramago declarou: “Este é um
livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu
sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e
violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida.
São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não
somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso”. Ao
escrever Sangue no olho, você compartilha desta angústia sentida por
Saramago?
São raras as vezes em que penso no leitor enquanto escrevo, eu não saberia dizer quem é o meu leitor… e muito menos como é, o que quer, o que busca. Por melhor ou pior que seja, eu sou a única leitora que posso imaginar e a única que posso agradar além de incomodar. Isso me dá uma enorme liberdade na hora de escrever, uma liberdade para ir até onde deva ir um romance mesmo quando este destino seja extremamente estranho e cruel. Nunca tratei com pena a leitora que eu sou, busco levar o romance até certos limites, fazer ver certas coisas que nem eu sei quais são quando começo a escrever. Por outro lado, sinceramente não acredito que os leitores adultos não saibam o quão cruéis nós, os seres humanos, somos. Não é essa a realidade que poderiam descobrir nem no meu romance ou em algum outro. Tenho a impressão de que não é a crueldade e sim os modos sofisticados em que, às vezes, aparece, os meios utilizados, as perguntas que nos obriga a fazer. Outra diferença que sinto perante esta afirmação de Saramago é que não sofro enquanto escrevo, por mais que a cena seja terrível. Não sofro com os personagens, não sofro com as suas digressões: toda a minha energia se volta para o material da escrita e não na sua profundidade moral. Se a frase não sai, se a cena não tem força, se o personagem não se estrutura, é quando me desespero. Sei que é bem-visto um escritor sofrer ao escrever — é um legado do romantismo, penso às vezes; noutras, penso que sofrer ou dizer que se sofre é uma justificativa necessária ao escritor perante o mundo quando não tem que se levantar de manhã cedo, tomar um ônibus lotado, e passar horas em um escritório ou uma fábrica. Tenho um trabalho em tempo integral, não tão sacrificado quanto o do operário ou do burocrata, é certo, mas talvez porque não preciso destas justificativas, posso dizer que desfruto muito quando tenho a chance de tirar tempo para escrever e encontro sucesso na execução de um texto que alcança até onde deve ir. Isso é o que sinto quando escrevo ficção, o grande prazer da escrita por si só, até quando o que esteja contando seja terrível, sei que se trata de um artifício. Dito isso, reconheço que senti algo bem diferente ao escrever o meu livro sobre a situação palestina, e creio que o sentimento foi assim porque estava falando das vidas reais das pessoas que sofrem e que são violentadas sistematicamente por outras: aí, sim, eu me vi muito comovida e indignada. (3)
Por
fim, textos da escritora e afins:
Um excerto de Sangue no olho (Cosac Naify, 2015)
AMANHÃ
(Cá estou. Lá vou eu. Olhando outra vez pela janela do táxi, com o olhar fixo, tentando, da estrada, captar um pouco do horizonte, a silhueta agora oca de duas torres pulverizadas, a linha do céu mutilada junto ao brilho tênue do rio salpicado de estrelas, o néon do History Channel deslumbrante sobre a água. Vejo tudo sem ver, vejo tudo através da lembrança do já visto ou através dos teus olhos, Ignacio. Os faróis do táxi rasgavam uma leve neblina noturna de papel e metais chamuscados que se negava a se esfumar, grudava no vidro e o embaçava. O turco ultrapassava alguns carros aos trancos, mas também deixava outros nos ultrapassarem, velozes, buzinando. Vocês cochilavam, talvez tenham até caído no sono, embalados pelas inclementes aceleradas e freadas. Acomodei a testa na janela e fechei os olhos até ser sacudida, Ignacio, por tua voz, tão nova em minha vida que às vezes eu demorava a reconhecer como tua, tua voz que, aliás, mudava de tom quando você falava em outra língua. Era uma voz para dar instruções em inglês ao motorista do táxi: que saísse pela próxima exit, que virasse para o oeste, que seguisse em direção à Washington Bridge, ainda acesa no horizonte. Não tínhamos planejado cruzar aquela ponte enferrujada, não estávamos indo para o subúrbio, do outro lado, onde eu morei um dia e para onde nunca pretendi voltar. Estava voltada para o presente, eu, isso era tudo o que eu tinha enquanto deixávamos Julián na esquina do prédio dele e prosseguíamos para o teu, que agora era o nosso. E quando ficamos sozinhos você segurou meu rosto para que eu me virasse e te olhasse. Para que você pudesse me olhar. Teus olhos não percebiam nada de extraordinário, não viam o que havia atrás de minhas pupilas. Foi muito? Muito mais do que antes, falei, sombria, mas talvez amanhã. Amanhã você vai estar melhor. Mas amanhã já era hoje: só faltava clarear e as luzes mortiças serem eclipsadas pelo sol. Coroado com um turbante o turco parou de repente e escorregamos para frente. Não se mova, você disse, e depois senti a porta batendo, e você deve ter dado toda a volta para abri-la para mim, me dar a mão, me avisar que abaixasse a cabeça. Vendo-nos de longe, qualquer um diria que estávamos saindo de outro século, não de um carro. Descemos da máquina do tempo de braços dados e assim subimos a escadaria até o elevador e os cinco andares. Assim avançamos pelo corredor até o tilintar das chaves na fechadura. O ar parado do apartamento nos recebeu. O calor veio de todos os cantos, do chão sem tapetes, das paredes completamente nuas, das infinitas caixas que pareciam cheias de carvão em brasa em vez de livros. Havia dias que empacotávamos as coisas para uma mudança iminente. Por um corredor segui direto para o quarto, você entrou atrás: cuidado, deixei um copo d’água aqui pra você. E nos jogamos na cama e nos abraçamos apesar da umidade e, ungidos de suor, adormecemos. E na manhã seguinte você levantou as persianas e sentou na minha frente esperando eu acordar, não sei se do meu sonho ou da minha vida. Mas eu estava insone havia horas, sem coragem de abrir os olhos. Lina? Levantei uma pálpebra, depois a outra, e para meu espanto havia luz, um pouco de luz, luz suficiente: a sombra sanguinolenta não tinha desaparecido do olho direito, mas a do esquerdo se precipitara para o fundo. Eu só estava meio cega. E por isso aceitei teu café e o levei à boca sem hesitar, por isso até sorri, porque, apesar de tudo. E você estava ali, como outro caolho, sem entender o que tinha acontecido. Não podia calcular a gravidade. Não se animava a fazer todas as perguntas. Guardava-as para si, amarrotadas, como agora, nos bolsos.)
Um depoimento sobre o ensaio “Contra os filhos” (2014):
Manu Chao é francês, filho de espanhóis que deixaram a própria terra para escapar dos tentáculos de um regime ditatorial. É compositor, um artista sensível a movimentos sociais e que acredita que as revoluções de que necessitamos surgem pequenas, desencadeando-se a partir de gestos que visam, em primeiro lugar, modificar seu próprio executor ou seu entorno. Gestos irmanados no cotidiano seriam, portanto, motores das transformações que sonhamos.
Assim, foi pensando em estender e em fortalecer a corrente formada por aqueles que se preocupam com os impactos das migrações pelo mundo que Chao lançou, ao longo de sua carreira, diferentes versões de sua música “Clandestino”, apresentada originalmente ao público 1998. Em sua versão mais recente, ela chega acrescida de versos em inglês, interpretados por Calypso Rose, reconhecida cantora e compositora de Trinidade e Tobago.
Solo, voy con mi pena Sola, va mi condena Correr es mi destino Por no llevar papel
Pa' una ciudad del norte Yo me fui a trabajar (Como una raya en el mar) Mi vida la dejé Entre Ceuta y Gibraltar (Como una raya en el mar)
Solo, voy con mi pena Sola, va mi condena (Como una raya en el mar) Correr es mi destino Para burlar la ley (Como una raya en el mar)
I cannot go forward I cannot return And the land in front don't want me Look the land behind me burn (Como una raya en el mar)
I am stranded on the sea With an unknown destiny (Como una raya en el mar) No home to return to Nobody waiting for me (Como una raya en el mar)
Solo, voy con mi pena Sola, va mi condena Correr es mi destino Para burlar la ley (Como una raya en el mar)
Perdido en el corazón De la grande Babylon (Como una raya en el mar) Me dicen el clandestino Por no llevar papel Lai-larai-la-lai-lai Lai-larai-lai-lai Lai-larai-la-lai-lai Lai-larai-lai-lei
Prr
I cannot go forward I cannot return And the land in front don't want me Look the land behind me burn
We are stranded on the sea With my whole family (Como una raya en el mar) No home to return to Nobody waiting for me (Como una raya en el mar)
Solo, voy con mi pena Sola, va mi condena Correr es mi destino Yo soy el quiebra ley (Como una raya en el mar)
Oh my gosh (Lai-larai-la-lai-lai) I am in pain (Lai-larai-lai-lai) Prr (Lai-larai-la-lai-lai) (Larai-larai-lai-lai)
A letra da música está
disponível aqui
e a música pode ser baixada gratuitamente do site
de Manu Chao.
Esta música de Chao, que não pode ser mais atual, teve suas camadas de sentido sendo adensadas ao longo dos anos, inclusive pelo próprio compositor. Em 2011, Chao gravou um novo clip para ela depois de tomar conhecimento de uma prisão para imigrantes situada no Arizona, nos Estados Unidos. Restou ao compositor gravar seu vídeo em frente ao presídio, uma vez que o xerife que controlava o território onde ela estava situada não autorizou a filmagem das instalações. A despeito disso, a inserção no clip de um depoimento de um dos detidos no local contribuiu para nos dar a dimensão do sofrimento a que outros como ele, ali detidos, estavam sendo submetidos ao serem tratados como “terroristas”, e não como pessoas que migram buscando melhores condições de trabalho, para que possam sustentar suas famílias.
Em 2019, Lila Downs, uma cantora mexicana que assim como Chao, canta em várias línguas, juntou-se ao time daqueles que vêm contribuindo para a renovação de “Clandestino”. Sua versão traz visibilidade para as crianças que migram, algumas das quais sendo abusivamente presas em centros de detenção. A prática, comum nos Estados Unidos, nos faz refletir sobre o papel brutal de governos ditos democráticos, governos que hierarquizam pessoas e que, ao fazê-lo, privam tantos da possibilidade de se constituírem cidadãos em territórios que não aqueles de seu nascimento. Downs relaciona os milhares de crianças e de mulheres migrantes a nosso futuro, instando-nos a protegê-las, na medida em que são protagonistas de um movimento – o da imigração – que molda a história da humanidade desde sua origem.
Na sequência, Calypso Rose, com o engajamento que lhe é típico, direciona a visada de “Clandestino” para aqueles que singram mares de forma precária, deixando terras natais hostis para se depararem, não poucas vezes – se concluem a travessia – com a agressividade de quem ainda não aprendeu a lidar com a diversidade e a reconhecer o potencial alheio, moeda para o enriquecimento mútuo quando há encontro, ao invés de incompatibilidade de perspectivas e o sufocamento da alteridade.
“Clandestino” – Manu Chao & Calypso Rose (2019)
Ao recuperarmos a música de Chao, com as contribuições de Calypso e de Downs, torna-se inevitável trazer à mente tragédias que envolveram crianças. Há pouco, uma menina brasileira de 2 anos desapareceu em um rio localizado entre o México e o Estados Unidos enquanto sua mãe procurava cruzá-lo, mesmo rio em que, dias depois, veio a falecer uma menina salvadorenha, tão pequena quanto, acompanhada de seu pai, que procurava chegar aos Estados Unidos depois de semanas vivendo em abrigos no México. Esses eventos surgem como atualizações da morte do sírio Alyan Kurdi, de 3 anos, encontrado em uma praia da Turquia em 2015 depois que o barco em que sua família estava naufragou. Essas ocorrências escancaram o quanto há por ser feito para que as vidas de migrantes parem de ser tratadas como se fossem descartáveis.
Para a cantora e compositora colombiana Shakira, a imagem de Alyan Kurdi não pode ser ignorada ou esquecida, sendo de todos a responsabilidade de gerir uma crise humanitária que tem feito crianças “pagarem o preço da guerra”. A artista, que descende de libaneses e que mora na Espanha atualmente, é embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Para além da carreira no campo da música, ela se dedica à filantropia, dando atenção especial a projetos que procuram garantir o desenvolvimento integral de crianças, especialmente em seus primeiros anos de vida. A este compromisso se dedica a Fundación Pies Descalzos, ONG fundada pela cantora no final da década de 1990 e que oferece educação para crianças e jovens em Barranquilla, Cartagena e Quibdó, na Colômbia.
A preocupação com as condições de vida de migrantes não é a única característica que aproxima Shakira de Manu Chao. A colombiana também conta em seu repertório com uma música chamada Clandestino, embora a sua enfoque questões sentimentais. Além disso, a compositora, que é poliglota, também estabelece parcerias com artistas de outras nacionalidades, assim diversificando suas produções.
Se em Clandestino, a cantora fez um dueto com Maluma, que é colombiano, devemos lembrar que ela já uniu sua voz à de Rihanna, cantora nascida em Barbados. As duas cantaram e gravaram juntas o clip da música “Can’t remember to forget you”, que já alcançou quase 1 bilhão de visualizações no Youtube desde 2014.
Não nos parece equivocado pensar que o bom entrosamento das duas nesse contexto resulta, em parte, de afinidades que têm. Rihanna também soma ao grupo dos atentos a políticas pouco inclusivas que repercutem negativamente sobre a vida de imigrantes. Ela, que não hesita em se manifestar publicamente sobre o assunto, também responde por uma fundação comprometida com o respeito aos direitos humanos. A Clara Lionel Foundation mantém iniciativas no campo educacional em países como Barbados, Senegal e Malawi, além de oferecer bolsas de estudos para jovens aprovados em seleções de universidades dos Estados Unidos.
Rihanna também tem características em comum com Calypso Rose, que interpreta com Manu Chao uma das mais recentes versões de “Clandestino”. Ambas são caribenhas e vivem nos Estados Unidos. Agora Rose trabalha a partir da América do Norte pela divulgação internacional do calypso ao mesmo tempo em que sente a vida na diáspora repercutir sobre o seu trabalho.
Em 2016, por exemplo, Rose lançou um álbum chamado “Far from home” (“Longe de casa”), que conta com a participação de Chao e que recebeu o prêmio Victoire de la musique, o Grammy francês, em 2017. Quando questionada a respeito, respondeu: “Diante de ‘Far from home’, estou muito mais animada com o que alcancei. É um álbum que quase ganhou um disco de platina. – Graças a ele, tive a oportunidade de cantar para pessoas de muitos lugares. Isto é o que pretendi expressar com seu título: estou longe de casa, voando, de um show para outro, Espanha, Alemanha, Nova Iorque, entretanto, estou em conexão com os outros, musicalmente, e isso é importante para uma pessoa do Caribe. Este é um álbum caribenho importante em termos de capacidade de alcance de uma grande audiência.”
Na mesma ocasião, quando instada a escolher uma música de seu repertório que trata de sua terra, de seu lar, a sua favorita, Rose mencionou “O, Tobago”, que exalta a beleza da ilha em que nasceu e onde viveu até os nove anos, época em que se mudou para Trinidad. Se é certo o seu carinho por Tobago, inigualável é o papel que teve Trinidad em sua vida: foi aí que ela conheceu as melodias do calypso e aprendeu a dançá-lo, dando, assim, os primeiros passos para a instauração de um reinado em um campo até então dominado pelos homens.
Que Calypso Rose, Manu Chao, Rihanna e Shakira possam continuar sendo referências na luta pela emancipação de pessoas em situações de vulnerabilidade!
De nossa parte, torcemos para que este texto torne visível para os que acompanham o Leituras dos Girassóis que quanto mais oportunidade migrantes tiverem para exercer suas potencialidades em territórios diferentes daqueles em que nasceram, mais intensas serão nossas trocas culturais e, portanto, mais multifacetadas e enriquecidas se tornarão nossas sociedades.
Que possamos então nos comunicar bem e nos abrir mais uns com os outros para que as próximas lágrimas que vierem a surgir no horizonte sejam indício de entendimento mútuo e de satisfação com as interações que estivermos engendrando!
Yo no creo en una gran revolución que va a cambiar las cosas, me parece muy utópico. Creo en miles y miles de revoluciones de barrio, juntándose unas a otras se hará la diferencia […] porque puede llegar a cambiar las cosas desde uno mismo, desde su família. – Manu Chao.
Warsan Shire nasceu em 1988, no Quênia, e cresceu na Inglaterra, para onde se mudou com os pais que migravam para se afastar de uma guerra instalada em sua terra natal, a Somália. Hoje a poeta vive nos Estados Unidos e vem lapidando uma carreira mantida em estreita conexão com o audiovisual. Ela gosta “da ideia de unir diferentes formas de arte e de mostrar a fluidez que pode ser encontrada na junção de pessoas e de processos”. Sua atuação neste campo de maior repercussão resulta de uma adaptação que realizou de seu poema “For women who are difficult to love” para as músicas e o vídeo que dão sustentação ao álbum “Lemonade”, de Beyoncé.
No campo literário, Warsan coleciona alguns prêmios, como o Young Poet Laureate for London, que lhe foi conferido em 2013, e tem contribuído para a visibilização de experiências de mulheres, de imigrantes e de refugiados. Ela também tem explorado temas como a solidão e a desigualdade entre os gêneros. E nesse processo, tem contribuído para que reflitamos sobre o que significa pertencer a territórios e a culturas e, inevitavelmente, sobre o(s) sentido(s) que atribuímos à palavra “lar”. Em 2012, quando perguntada a respeito do termo, admitiu: “Eu ainda me sinto sem um lar. Eu moro em Londres e vivi aqui quase a minha vida toda, mas é difícil se conectar com a cidade. Eu tenho viajado por aí e venho notando o meu corpo significar mais em outros lugares. Mas eu comecei a entender o que significa pertencer, então eu anseio explorar diferentes países para notar o quão plenamente eu posso me sentir em casa em um lugar que, no fim das contas, não é o lugar de onde eu venho. Talvez o meu lar esteja em um lugar para onde estou indo e onde nunca estive antes”.
Essa projeção do próprio lar no futuro é o que impele refugiados a deixarem espaços que os rejeitam ou ameaçam, munindo-se de coragem e de esperança enquanto anseiam pela possibilidade de inaugurar uma vida em um território outro, de que, normalmente, têm poucas referências. Warsan registrou traços da brutalidade que compele humanos a esse tipo de jornada em seu poema “Home” (“Lar”), que apresentamos a seguir, renovando seu convite para uma reflexão sobre como transtornamos lugares e pessoas e sobre nossa (in)disposição em acolhê-las na sequência.
Home
no one leaves home unless home is the mouth of a shark you only run for the border when you see the whole city running as well
your neighbors running faster than you breath bloody in their throats the boy you went to school with who kissed you dizzy behind the old tin factory is holding a gun bigger than his body you only leave home when home won’t let you stay.
no one leaves home unless home chases you fire under feet hot blood in your belly it’s not something you ever thought of doing until the blade burnt threats into your neck and even then you carried the anthem under your breath only tearing up your passport in an airport toilets sobbing as each mouthful of paper made it clear that you wouldn’t be going back.
you have to understand, that no one puts their children in a boat unless the water is safer than the land no one burns their palms under trains beneath carriages no one spends days and nights in the stomach of a truck feeding on newspaper unless the miles travelled means something more than journey. no one crawls under fences no one wants to be beaten pitied
no one chooses refugee camps or strip searches where your body is left aching or prison, because prison is safer than a city of fire and one prison guard in the night is better than a truckload of men who look like your father no one could take it no one could stomach it no one skin would be tough enough
the go home blacks refugees dirty immigrants asylum seekers sucking our country dry niggers with their hands out they smell strange savage messed up their country and now they want to mess ours up how do the words the dirty looks roll off your backs maybe because the blow is softer than a limb torn off
or the words are more tender than fourteen men between your legs or the insults are easier to swallow than rubble than bone than your child body in pieces. i want to go home, but home is the mouth of a shark home is the barrel of the gun and no one would leave home unless home chased you to the shore unless home told you to quicken your legs leave your clothes behind crawl through the desert wade through the oceans drown save be hunger beg forget pride your survival is more important
no one leaves home until home is a sweaty voice in your ear sayingleave, run away from me now i dont know what i’ve become but i know that anywhere is safer than here
Aproveite também para ler uma tradução do poema para o português e para ouvi-lo sendo declamado, pela escritora inclusive – confira aqui e aqui.
Emanuel Melo é um escritor nascido nos Açores, região insular de Portugal onde passou sua infância. Na sequência, emigrou para o Canadá, estabelecendo-se em Toronto. Daí o título de seu blogue – The Torontonian Azorean writer” que, à primeira vista, indica como o escritor percebe suas raízes geoculturais.
Nesta quinzena, aproveitaremos a oportunidade para fazer referência a quatro textos seus: “Being Through Words” (2018) e “Exile” (2016), publicados em seu blogue, “The New Wave of Luso-Canadians” (2017), publicado na imprensa, e “The Weekly Visit” (2014), conto publicado em uma revista literária.
Foto tirada por Fernanda Sousa (2016)
Em “Being Through Words”, Emanuel trata da disputa linguística que o habita e de seu desejo de fazer reviver em si mesmo a língua portuguesa, com a propriedade com que maneja a língua inglesa, íntima depois de décadas de convívio diário. Ele tece considerações sobre como elabora seus textos, assinalando o entremear de fios da língua portuguesa em textos construídos em língua inglesa como uma de suas características. E de modo sucinto, alude ao significado da memória para o imigrante, ao papel da tradução, além de procurar atribuir um sentido à ideia de pertencer.
Em “Exile”, Emanuel se revela investido em uma jornada por meio da qual pretende encontrar seu lar por meio da linguagem. E se confessa um escritor leitor que elege referenciais dentre seus pares, como Jhumpa Lahiri, de quem admira a “habilidade de articular sentimentos sobre linguagem e pertencimento”. São referenciais por meio dos quais valida, em algum grau, sua própria trajetória, aquilatando seu projeto literário e refletindo sobre suas experiências, a que dizem respeito a questão identitária, a questão linguística e, no plano artístico, o acabamento estético. Nesses textos, o escritor também faz referência às escritoras Avelina da Silveira e May Sarton.
Já no texto “The New Wave of Luso-Canadians”, Emanuel vai à sociedade que lhe circunda para retomar questões que lhe são caras. Trata-se de pensar o português em interação com a sociedade canadense. Para tanto, alude a imigrantes portugueses de duas épocas e a um Canadá que alterou sensivelmente, ao longo dos anos, os critérios por meio dos quais seleciona os estrangeiros que poderão habitá-lo. Nesse texto, indiretamente, o escritor dá visibilidade às maneiras por meio das quais podemos dar forma a um conceito: aqui devemos pensar no processo de corporificação de uma identidade nacional. Em síntese, somos convidados a considerar que “assim ou assado” pode-se ser português, algo que felizmente destoa das interpretações que buscam uma essência uniforme para aquilo que se quer nacional ou de uma mesma etnia, sempre se excluindo, quando não se esmagando, a diversidade e o que ela tem de potência nesses processos rotuladores.
Finalmente, o conto “The Weekly Visit”, narrado em terceira pessoa, nos põe em contato com personagens de uma mesma família: um homem e sua mãe viúva, ambos portugueses e há anos residentes no Canadá. A falta de sintonia ou a indisponibilidade emocional do filho para com a mãe bem como a postura vitimista dela ocupam o primeiro plano da narrativa. E motivos importantes são suscitados pelo texto, como a velhice, o (des)afeto e a solidariedade. Alguns deles são primordiais para migrantes, como a manutenção da identidade originária por meio dos hábitos alimentares e o convívio com línguas diferentes e os desafios advindos.
Aqueles que se sentem motivados a pensar sobre implicações culturais (e até políticas) do migrar e sobre o sentido de pertencer – a países, culturas, línguas e pessoas – terão suas reflexões nutridas pelas ideias disseminadas por esses textos de Emanuel. E enquanto não contamos com traduções suas, em particular os lusófonos que ousarem transpor uma língua outra perscrutarão um mundo com elementos que ressoarão em suas vidas, de forma mais ou menos explícita.
Clarice
Lispector é uma escritora que reivindicou o Brasil como sua terra natal apesar
de ter nascido na Ucrânia. Fato é que a escritora chegou ao país bem novinha,
com a família, que fugia de uma guerra civil e da perseguição a judeus que
sucederam à Revolução Bolchevique de 1917.
A
família Lispector chegou à cidade alagoana de Maceió, onde viveu por alguns
anos, em contato com parentes, até se mudar para Pernambuco. Mãe, pai e filhas
se estabeleceram em Recife, onde permaneceram por um período maior, convivendo,
então, com familiares e também com a comunidade judaica local. Nesse período, a
escritora cuidou de sistematizar conhecimentos sobre línguas como o português,
o iídiche, o hebraico, o inglês e o francês. Isto depois de ter seu nome
alterado de Haia para Clarice, por decisão de seu pai.
Com o Recife no coração, a futura escritora se mudou com a família para o Rio de Janeiro, onde cursou Direito e iniciou uma carreira no jornalismo. Mas a então capital brasileira não abrigaria, ainda, seu último pouso. Porque veio a se casar com um diplomata, Clarice se viu envolvida com vários outros territórios, de forma mais ou menos desejada. Acabou vivendo em países como a Itália, a Inglaterra, a Suíça e os Estados Unidos, até voltar a viver no Brasil, especificamente no Rio de Janeiro, onde passou seus últimos dias.
Os interessados na biografia da escritora, tirarão proveito desta linha do tempo e desta fotobiografia, em que nos amparamos para traçar o percurso da escritora. Neste momento, porém, gostaríamos de chamar a atenção para dois textos de Clarice que tratam da questão do pertencimento. O primeiro é uma crônica que ela publicou em 1968 no Jornal do Brasil; o segundo, ainda mais pessoal, consiste em uma carta que a escritora escreveu para o presidente do Brasil enquanto tramitava seu processo de naturalização. Os textos falam por si mesmos. Acompanhe-os a seguir:
Pertencer
Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço a criança
sente o ambiente, a criança quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já
começou.
Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de
pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar
sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça.
Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me
acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se
contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.
Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou
a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto
preciso e de como sou pobre. Sou, sim.
Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do
que isso. Quem sabe se comecei a escrever tão cedo na vida porque, escrevendo,
pelo menos eu pertencia um pouco a mim mesma. O que é um fac-símile triste.
Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser
gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova de “solidão de não
pertencer” começou a me invadir como heras num muro.
Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca
fiz parte de clubes ou de associações? Porque não é isso o que eu chamo de
pertencer. O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me viesse
de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertencesse. Mesmo minhas
alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar
patética. É como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado de presente
nas mãos – e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações
patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia,
raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.
Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo
ou a alguém mais forte.
Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha
própria força – eu quero pertencer para que minha força não seja inútil e
fortifique uma pessoa ou uma coisa.
Embora eu tenha uma alegria: pertenço, por exemplo, a meu país,
e como milhões de outras pessoas sou a ele tão pertencente a ponto de ser
brasileira. E eu que, muito sinceramente, jamais desejei ou desejaria a
popularidade – sou individualista demais para que pudesse suportar a invasão de
que uma pessoa popular é vítima -, eu, que não quero a popularidade, sinto-me
no entanto feliz de pertencer à literatura brasileira. Não, não é por orgulho,
nem por ambição. Sou feliz de pertencer à literatura brasileira por motivos que
nada têm a ver com literatura, pois nem ao menos sou uma literata ou uma
intelectual. Feliz apenas por “fazer parte”.
Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir
em mim a vaga e no entanto premente sensação de precisar pertencer. Por motivos
que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas:
nascida.
No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão
bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada,
acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui
deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E
sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu
falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado.
Sei que meus pais me perdoaram eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança.
Mas eu, eu não me perdoo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um
milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a meu pai
e a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não
pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por
vergonha não podia ser conhecido.
A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me
dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é
viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os
últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo
que caminho.
Esta crônica faz parte do livro A descoberta do mundo, publicado pela editora Rocco.
Rio de Janeiro, 3 de junho de 1942
Senhor presidente Getúlio Vargas,
Quem lhe escreve é uma jornalista, ex-redatora da
Agência Nacional (Departamento de Imprensa e Propaganda), atualmente n’A Noite,
acadêmica da Faculdade Nacional de Direito e, casualmente, russa também.
Uma russa de 21 anos de idade e que está no Brasil há 21
anos menos alguns meses. Que não conhece uma só palavra de russo mas que pensa,
fala, escreve e age em português, fazendo disso sua profissão e nisso pousando
todos os projetos do seu futuro, próximo ou longínquo. Que não tem pai nem mãe
– o primeiro, assim como as irmãs da signatária, brasileiro naturalizado – e
que por isso não se sente de modo algum presa ao país de onde veio, nem sequer
por ouvir relatos sobre ele. Que deseja casar-se com brasileiro e ter filhos
brasileiros. Que, se fosse obrigada a voltar à Rússia, lá se sentiria
irremediavelmente estrangeira, sem amigos, sem profissão, sem esperanças.
Senhor presidente. Não pretendo afirmar que tenho
prestado grandes serviços à Nação – requisito que poderia alegar para ter direito
de pedir a vossa excelência a dispensa de um ano de prazo, necessário a minha
naturalização. Sou jovem e, salvo em ato de heroísmo, não poderia ter servido
ao Brasil senão fragilmente. Demonstrei minha ligação com esta terra e meu
desejo de servi-la, cooperando com o DIP, por meio de reportagens e artigos,
distribuídos aos jornais do Rio e dos Estados, na divulgação e na propaganda do
governo de vossa excelência. E, de um modo geral, trabalhando na imprensa
diária, o grande elemento de aproximação entre governo e povo.
Como jornalista, tomei parte em comemorações das grandes
datas nacionais, participei da inauguração de inúmeras obras iniciadas por
vossa excelência, e estive mesmo ao lado de vossa excelência mais de uma vez,
sendo que a última em lº de maio de 1941, Dia do Trabalho.
Se trago a vossa excelência o resumo dos meus trabalhos
jornalísticos não é para pedir-lhe, como recompensa, o direito de ser
brasileira. Prestei esses serviços espontânea e naturalmente, e nem poderia
deixar de executá-los. Se neles falo é para atestar que já sou brasileira.
Posso apresentar provas materiais de tudo o que afirmo.
Infelizmente, o que não posso provar materialmente – e que, no entanto, é o
que mais importa – é que tudo que fiz tinha como núcleo minha real união com o
país e que não possuo, nem elegeria, outra pátria senão o Brasil.
Senhor presidente. Tomo a liberdade de solicitar a vossa
excelência a dispensa do prazo de um ano, que se deve seguir ao processo que
atualmente transita pelo Ministério da Justiça, com todos os requisitos
satisfeitos. Poderei trabalhar, formar-me, fazer os indispensáveis projetos
para o futuro, com segurança e estabilidade. A assinatura de vossa excelência
tornará de direito uma situação de fato. Creia-me, senhor presidente, ela
alargará minha vida. E um dia saberei provar que não a usei inutilmente.
Clarice Lispector
Carta disponível aqui (acesso em 15/06/2019) e no livro Correspondências, publicado pela editora Rocco.
“Se eu tivesse que dar um título à minha vida seria: à procura da própria coisa.”
Quer mais de Clarice? Veja:
Uma entrevista que ela concedeu à TV em 1977: vídeo e transcrição.
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