Emigrantes portugueses na construção da literatura lusógrafa contemporânea

Rumamos a Dortmund, na Alemanha, para conhecer uma iniciativa da Oxalá Editora, que se dedica à descoberta e à publicação de escritores portugueses emigrados. Referimo-nos à publicação, em 2018, do livro “Contos da Emigração: Homens que sofrem de sonhos”. No site da editora, encontramos uma entrevista do responsável pelo projeto, o jornalista (?) Mário dos Santos, conduzida por Nuno Gomes Garcia, autor de um dos textos da coletânea. Abaixo, ela surge acompanhada por outra, do próprio Nuno, em que ele comenta sobre o texto que escreveu.

Nuno Gomes Garcia conversa com Mário Dos Santos

«Contos da emigração: Homens que sofrem de sonhos» é o mais recente livro, uma coletânea de 12 contos, idealizado por Mário dos Santos, fundador e editor da Oxalá Editora, uma chancela orientada para a Diáspora. Os direitos da obra reverterão em favor da Plataforma de Apoio aos Refugiados.

Sediada em Dortmund, na Alemanha, a Oxalá Editora tem por objetivo fazer chegar a voz dos 5 milhões de Portugueses que vivem dispersos pelo estrangeiro aos 10 milhões de Portugueses que vivem em Portugal, distribuindo, para esse efeito, os livros tanto dentro como fora de Portugal.

Este livro, que mistura dois autores clássicos portugueses – Eça de Queirós e José Rodrigues Miguéis – com dez autores contemporâneos (nove dos quais expatriados), explora os caminhos da emigração, tanto os da década de 1960 como os mais recentes que datam do período da crise pós-2008.

Uma obra rica, que se alicerça na variedade de registo de cada autor – alguns deles já consagrados -, indo desde a ruralidade do interior português à urbanidade londrina ou alemã; do drama à sátira, explorando o momento do «salto», a dolorosa adaptação a diferentes culturas e idiomas, passando pela discriminação e a segregação sofridas na terra de acolhimento ou, o reverso da medalha, pelos surtos xenófobos e racistas contra outras comunidades, preconceitos extremistas que alguns emigrantes portugueses também partilham.

Mário, antes de nos debruçarmos sobre o livro, falemos um pouco do teu percurso. Tu fundaste o Portugal Post, um jornal mensal publicado na Alemanha em língua portuguesa, e há pouco decidiste dedicar-te inteiramente à Oxalá Editora. O que é que te levou a mudar de rumo?

Sim, de facto, estive à frente do jornal durante 25 anos. Achei que ao fim desses anos seria o momento de passar a pasta, digamos assim, a alguém que desse continuidade a um jornal com história e muito importante para a vida da Comunidade na Alemanha. Durante o meu percurso no jornal, houve ocasiões em que pessoas se me dirigiam dizendo que tinham coisas escritas (poesia, contos, histórias da sua vida…) na gaveta e que gostariam de as verem publicadas. Algumas dessas pessoas viviam na Alemanha, mas também havia gente de outros países que me diziam que gostariam de ver os seus escritos publicados e me desafiavam para o fazer. Percebi então que fazia sentido uma editora vocacionada para os autores da Diáspora. Em 2015, decidi criar a Oxalá Editora pensando já que daí a pouco tempo entraria no gozo da reforma e que esse seria um tempo para me dedicar àquilo de que sempre gostei, os livros.

A editora que também tem edições bilingues, em português e em alemão, veio de facto preencher um vazio que era evidente. Como editor, qual é o teu principal objetivo: fazer chegar a voz da diáspora a Portugal ou promover a literatura portuguesa na Alemanha?

Sim, há edições bilingues. Gostaria de destacar a tradução para alemão da obra de Sophia de Melo Andresen, «A menina do mar». Mas a minha principal preocupação são os autores que vivem no exterior, ou seja, a Oxalá Editora não se remete apenas à Alemanha. Há, inclusivamente, propostas de parceria provenientes de outros países. A ideia é ter uma casa editora que perceba a realidade da Diáspora. Sabes tão bem como eu que em Portugal não se dá a devida importância aos Portugueses que vivem no estrangeiro, sejam eles poetas ou carpinteiros; cientistas ou concierge… Mas também é verdade que hoje se considera mais «quem vive lá fora», apesar dos preconceitos face aos emigrantes. O meu objetivo é descobrir bons autores da Diáspora, vivam eles nas Américas, na Europa ou seja lá onde for, publicá-los e divulgá-los em Portugal. Muitos têm, digamos assim, esse sonho, o de serem reconhecidos, não só nas Comunidades onde vivem, mas também, por questões sentimentais, de ligação ao país, a Portugal, onde gostariam de ver os seus livros a circular. Isso é um pouco difícil, sabemos. Quer dizer, nalguns casos até não é tão difícil assim.

Falemos do livro, então, que tem um título que resume em poucas palavras a essência do que é ser emigrante. Mas diz-nos quais os escritores que participam na coletânea. Vivem todos fora de Portugal?

Com a exceção da Ana Cristina Silva, todos os outros vivem fora de Portugal. Eu convidei-a porque ela tem uma crónica no Portugal Post.

E a Oxalá também publicou «A mulher transparente», um dos romances da Ana Cristina Silva.

Exatamente. Os outros autores vêm do Reino Unido, de França e da Alemanha. A minha preocupação foi juntar autores que vivem e sentem a diáspora e, olhando para quem pudesse representar, digamos assim, o espírito do livro, convidei a Gabriela Ruivo Trindade, vendedora do prémio Leya e que vive em Londres. Falei ao Nuno Gomes Garcia, ou seja, contigo, também com obra publicada e reconhecida. Falei ainda com uma autora que vive em Hamburgo, a Cristina Torrão, e com o Miguel Szymanski, um autor que tem a particularidade de se sentir emigrante alemão em Portugal e emigrante português na Alemanha. Mas o livro vale por todas as histórias lavradas pela caneta e no sentir do que é estar distante de Portugal.

Os contos são todos inéditos?

Sim, os contos dos autores vivos são todos inéditos.

E por que razão optaste por juntar a voz de dois clássicos da literatura à voz de dez escritores contemporâneos?

Só para tentar dizer que também os escritores clássicos viveram fora do país. Eles foram tão emigrantes como nós. Muita da obra do José Rodrigues Miguéis, por exemplo, incide sobre temáticas da emigração. E o Eça de Queirós…

O Eça foi Cônsul em Paris.

Sim, foi, de certa forma, emigrante, tendo falecido em Paris, como se sabe. Essa ideia surgiu-me assim muito espontânea. Mostrar que os problemas da emigração são muito parecidos independentemente da época. O que eu espero é que as pessoas que leiam este livro se apercebam que mesmo autores que ficaram na História da Literatura viveram as situações que os emigrantes de hoje vivem.

Esperas uma boa receção da obra por parte do público português?

A obra também vai ser distribuída em Portugal pela Europress, a empresa distribuidora com a qual a Oxalá colabora. E na Diáspora, temos contactos com algumas livrarias e vamos também fazer a promoção da obra em muitos países e em quase todos os continentes. A recepção e a aceitação que o livro dependerá de muitos fatores. Mas o que posso desde já dizer é que vale a pena ler este livro para melhor perceber os Portugueses das sete partidas do mundo.

Mário, para terminarmos, fala-nos de um livro de que tenhas gostado.

Assim de repente, sugiro o Primo Levi.

Qual? O “Se isto é um homem?”

Exatamente! As pessoas que vivem no nosso tempo deveriam ler esse livro, que retrata o sofrimento das vítimas do Holocausto, num momento em que os governantes dos grandes países amedrontam o mundo com discursos belicistas e perigosos para a humanidade.

Os contos da coletânea:

  • «A salto» de Ana Cristina Silva
  • «Vida adiadas» de Cristina Torrão
  • «Um poeta Lírico» de Eça de Queirós
  • «Cab driver» de Gabriela Ruivo Trindade
  • «O apelo do vale» de Isabel Mateus
  • «O viajante clandestino» de José Rodrigues Miguéis
  • «Uma história verdadeira» de Luísa Coelho
  • «A minha bicicleta verde» de Miguel Szymanski
  • «O sobrinho» de Nuno Gomes Garcia
  • «Partida largada fugida» de Rita Sousa Uva

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris. Publicada em 26/03/2018 em https://www.oxalaeditora.com/conto-iemanja/nuno-gomes-garcia-conversa-com-m%C3%A1rio-dos-santos/. Acesso em: 05 out. 2019.


Capa da coletânea

Cap Magellan conversa com Nuno Gomes Garcia

Cap Magellan: Como acolheste o convite que te foi feito para participares na coletânea?

Nuno Gomes Garcia: Pensei imediatamente que era por uma boa causa. Não apenas porque os direitos revertem a favor da Plataforma de Apoio aos Refugiados, mas também por permitir a bons autores, quase todos expatriados, escreverem sobre um tema que inexplicavelmente é pouco tratado na literatura contemporânea portuguesa: a emigração. Um país que possui um terço dos seus cidadãos a viver fora do território português e que finge que a emigração não é uma componente estrutural da sua sociedade há mais de 500 anos está condenado a ser um país que não se compreende a ele próprio. Se Portugal tem 5 dos seus 15 milhões de nacionais a viver no estrangeiro, esse facto tem de se refletir obrigatoriamente na sua matriz cultural, nomeadamente na literatura.

CM: Porquê utilizar a metáfora dos legumes?

NGG: A minha escrita, acho que é visível em todos os romances que escrevi, leva-me sempre a expor as minhas inquietudes através da sátira e do “tremendismo”, no exagero. Ora, uma das coisas que mais me inquieta hoje na Europa é o regresso às questões identitárias, o recrudescimento dos nacionalismos protofascistas presentes em alguns governos e de outros componentes abertamente fascistas em algumas franjas da sociedade.

Como, a meu ver, não existe nada de mais ridículo, mesmo do ponto de vista da comicidade e do humor, do que um certo povo se sentir superior a outro, ou do que um ser humano odiar outro ser humano por causa da cor da sua pele, por exemplo… tendo isso em vista, eu tentei fazer a experiência de transportar toda essa problemática para o mundo dos vegetais.

Só para que o leitor compreenda que ver uma cenoura a odiar uma beterraba, ambas antropomorfizadas, por causa da cor da sua “casca” é tão absurdo como um humano odiar outro humano por causa da cor da sua pele, da religião ou da orientação sexual.

CM: A emigração é somente feita de mulheres e homens que sofrem de sonhos? Não achas que pode ser um pouco miserabilista como forma de apresentar a emigração?

NGG: Não creio que se possa reduzir os dez contos ao título da coletânea, que é por natureza subjetivo e que tem um certo pendor poético. O livro contém dez maneiras diferentes de olhar para o fenómeno da emigração. Dez contos que mostram as complexidades ligadas ao simples facto de trocar uma realidade social por outra. Se há emigrantes que realizam os seus sonhos, outros há que vivem autênticos pesadelos. O sofrimento, tal como as alegrias, são sentimentos inerentes à vida, logo também inerentes à emigração.

Disponível em: http://capmagellan.com/a-coletanea-contos-da-emigracao-chegou-as-livrarias/. Acesso em: 05 out. 2019.

Que possamos logo encontrar «Contos da emigração: Homens que sofrem de sonhos» em formato digital e, quiçá, em nossa livraria preferida!

Daniel Munduruku + São Paulo = ancestralidade e literatura

Daniel Munduruku é um escritor brasileiro pertencente à etnia indígena munduruku. Nascido no Pará, fez os cursos de mestrado e de doutorado na cidade de São Paulo, cidade que pretendeu homenagear, em 2017, quando ela completava 463 anos. Na ocasião, Daniel se filmou lendo o prefácio de seu livro “Crônicas de São Paulo: Um olhar indígena”, publicado pela editora Callis, em 2004. Nesta publicação, o escritor trata de alguns bairros da cidade que possuem nomes indígenas, regiões por onde já perambulou e das quais se aproximou mais via pesquisa. Nesse processo, Daniel aproveitou para refletir sobre seu próprio lugar em São Paulo ao mesmo tempo em que procurou estar em sintonia com ancestrais paulistanos.

Cristina Bailey e Regina Zilberman, entrevistando Daniel em 2010, partem de uma referência a “Crônicas de São Paulo […]” para perguntar a ele “de que modo ‘um olhar indígena’ sobre a realidade difere de um olhar ‘negro’ ou [de] um olhar ‘branco’?” A entrevista merece ser lida por todos que desejarem se familiarizar, ainda que de forma sucinta, com o modo como o escritor percebia a si e a elementos da sociedade brasileira na época. Os interessados em questões migratórias se atentarão, por exemplo, a sua menção a Eliane Potiguara, a quem reconhece “pela coragem que sempre teve ao escrever sobre a diáspora indígena, sobretudo dos indígenas nordestinos”. (Para outras indicações de textos produzidos por ou sobre indígenas, parece viável recorrer à seleção feita por Janice Cristine Thiél a pedido da Carta Educação.)


Abaixo, seguem dois textos de Munduruku, uma crônica do livro “Crônicas de São Paulo: Um olhar indígena”, por meio do qual a cidade de São Paulo é lida por alguém que passa a habitá-la, no processo estabelecendo conexões, identificando similaridades e diferenças, quiçá, complementaridades. E, na sequência, um texto publicado no blogue do escritor, em que ele lida com as ideias de pertencimento e de identidade e nos indica as expressões mais adequadas para fazermos referência aos originários do Brasil.

Desejamos a todos uma boa leitura! E não se esqueçam de compartilhar este post com os amigos, de perto ou de longe!

Tatuapé – o caminho do tatu

Uma das mais intrigantes invenções humanas é o metrô. Não digo que seja intrigante para o homem comum, acostumado com os avanços tecnológicos. Penso no homem da floresta, acostumado com o silêncio da mata, com o canto dos pássaros ou com a paciência constante do rio que segue seu fluxo rumo ao mar. Penso nos povos da floresta.

Os índios sempre ficam encantados com a agilidade do grande tatu metálico. Lembro de mim mesmo quando cheguei a São Paulo. Ficava muito tempo atrás desse tatu, apenas para observar o caminho que ele fazia.

O tatu da floresta tem uma característica muito interessante: ele corre para sua toca quando se vê acuado pelos seus predadores. É uma forma de escapar ao ataque deles. Mas isso é o instinto de sobrevivência. Quem vive na mata sabe bem lá dentro de si, que não se pode permitir andar desatento, pois corre um sério perigo de não ter amanhã.

O tatu metálico da cidade não tem este medo. É ele que faz o seu caminho, mostra a direção, rasga os trilhos como quem desbrava. É ele que segue levando pessoas para os seus destinos. Alguns sofrem com a sua chegada, outros sofrem com sua partida.

Voltei a pensar no tatu da floresta, que desconhece o próprio destino, mas sabe aonde quer chegar. Pensei também no tempo de antigamente, quando o Tatuapé era um lugar de caça ao tatu. Índios caçadores entravam em sua mata apenas para saber onde estavam as pegadas do animal. Depois eles ficavam à espreita daquele parente, aguardando pacientemente sua manifestação. Nessa hora – quando o tatu saía da toca – eles o pegavam e faziam um suculento assado que iria alimentar os famintos caçadores.

Voltei a pensar no tatu da cidade, que não pode servir de alimento, mas é usando como transporte para a maioria das pessoas poder encontrar seu próprio alimento. Andando no metrô que seguia rumo ao Tatuapé, fiquei mirando os prédios que ele cortava como se fossem árvores gigantes de concreto. Naquele itinerário eu ia buscando algum resquício das antigas civilizações que habitaram aquele vale. Encontrei apenas urubus que sobrevoavam o trem que, por sua vez, cortava o coração da Mãe Terra como uma lâmina afiada. Vi pombos e pombas voando livremente entre as estações. Vi um gavião que voava indiferente por entre os prédios. Não vi nenhum tatu e isso me fez sentir saudades de um tempo em que a natureza imperava nesse pedaço de São Paulo habitado por índios Puris. Senti saudade de um ontem impossível de se tornar hoje novamente.

Pensando nisso deixei o trem me levar entre Itaquera e o Anhangabaú. Precisava levar minha alma ao princípio de tudo.

A crônica em questão foi divulgada nos sites de Ailton Krenak e de Margarida Caetano.


Usando a palavra certa pra doutor não reclamar

Na reflexão anterior falei sobre os equívocos que cercam a palavra índio. Fiz uma provocação e tenho certeza que muitas pessoas, especialmente professores, ficaram com a “pulga atrás da orelha”. Se assim aconteceu, alcancei meu objetivo. A inquietação é já um princípio de mudança. Ficar incomodado com os saberes engessados em nossa mente ao longo dos séculos é uma atitude sábia de quem se percebe parte do todo.

É sabido que esta palavra tem, às vezes, um quê de inocência em quem a usa. Tem quem a utiliza conscientemente também. Sabe que se trata de uma atitude política e fica mais fácil para os interlocutores entenderem do que estão falando. Aliás, esta palavra foi devidamente utilizada pelo movimento indígena no início dos anos 1970. Foi uma forma de mostrar consciência étnica. Antes disso não havia uma consciência pan-indígena por parte dos povos nativos. Eram grupos isolados em suas demandas políticas e sociais. Cada grupo lutava por suas próprias necessidades de sobrevivência. Somente depois que começaram a encontrar os outros grupos durante as famosas assembléias indígenas – patrocinadas pela Igreja católica, através do recém criado Conselho Indigenista Missionário – CIMI – é que as lideranças passaram a ter clareza de que se tratavam de problemas comuns a todos os grupos. A partir disso o termo índio passou a ter uma ressignificação política interessante. Notem, no entanto, que foi um termo usado na relação política com o estado brasileiro. Cada grupo continuou a se chamar pela própria denominação tradicional. Isso não significou abrir mão do jeito próprio de se chamar. Quando muito, chamavam para (sic.) os outros grupos ou pessoas indígenas utilizando o termo parente.

Aqui caberia outra reflexão que deverá vir brevemente. No entanto, devo deixar claro que o termo parente é usado pelos indígenas para todos os seres (vivos ou não-vivos). Chamar alguém de parente é colocá-lo numa rede de relações que se confunde com a própria compreensão cosmológica ancestral. Mesmo na língua portuguesa podemos observar que se trata de uma palavra que une concepções (par+ente) que denota um envolvimento que permite compreendermos que dois ou mais seres se juntam numa rede consangüínea. Do ponto de vista indígena isso vai além da consaguinidade e se insere numa cosmologia cuja crença coloca todos os seres (entes) numa teia de relações. Somente neste contexto é possível compreender a intrínseca relação dos indígenas com a natureza. Isso é, no entanto, assunto para outra conversa.

Até aqui tenho usado outra palavra para referir-me aos povos ancestrais. Ora eu uso nativo, ora indígena. Qual seria a certa? Ambas estão correta (sic.) para referir-se a uma pessoa pertencente ao um
(sic.) povo ancestral. Por incrível que possa parecer não há relação direta entre as palavras índio e indígena, embora o senso comum tenha sempre nos levado a crer nisso. Basta um olhadela (sic.) num bom dicionário que logo se perceberá que há variações em uma e noutra palavra. No duro mesmo os dicionários têm alguma dificuldade em definir com precisão o que seria o termo índio. Quando muito dizem que é como foram chamados os primeiros habitantes do Brasil. Isso, no entanto, não é uma definição é um apelido e apelido é o que se dá para quem parece ser diferente de nós ou ter alguma deficiência que achamos que não temos. Por este caminho veremos que não há conceitos relativo (sic.) ao termo índio, apenas preconceito: selvagem, atrasado, preguiçoso, canibal, estorvo, bugre são alguns deles. E foram estas visões equivocadas que chegaram aos nossos dias com a força da palavra.

Por outro lado o termo indígena significa “aquele que pertence ao lugar”, “originário”, “original do lugar”. Se pode notar, assim, que é muito mais interessante reportar-se a alguém que vem de um povo ancestral pelo termo indígena que índio (sic.). Neste sentido eu sou um indígena Munduruku e com isso quero afirmar meu pertencimento a uma tradição específica com todo o lado positivo e o negativo que essa tradição carrega e deixar claro que a generalização é uma forma grotesca de chamar alguém, pois empobrece a experiência de humanidade que o grupo fez e faz. É desqualificar o modus vivendis dos povos indígenas e isso não é justo e saudável.

Outra palavrinha traiçoeira e corriqueiramente usada para identificar os povos indígenas é tribo. É comum as pessoas me abordarem com a pergunta: qual é sua tribo? Normalmente fico sem jeito e acabo respondendo da maneira tradicional sem muita explicação. Sei que é um conceito entrevado na mente das pessoas e que só vai sair mediante muita explicação por muito tempo.

Afinal, o que tem de errado com a palavra? A antiga ideia de que nossos povos são dependentes de um Povo maior. A palavra tribo está inserida na compreensão de que somos pequenos grupos incapazes de viver sem a intervenção do estado. Ser tribo é estar sob o domínio de um senhor ao qual se deve reverenciar. Observem que essa é a lógica colonial, a lógica do poder, a lógica da dominação. É, portanto, um tratamento jocoso para tão gloriosos povos que deveriam ser tratados com status de nações uma vez que têm autonomia suficiente para viver de forma independente do estado brasileiro. É claro que não é isso que se deseja, mas seria fundamental que ao menos fossem tratados com garbo.

Se não pode chamá-los de tribo, como chamá-los? Povo. É assim que se deveria tratá-los. Um povo tem como característica sua independência política, religiosa, econômica e cultural. Nossa gente indígena tem isso de sobra e ainda que estejamos vivendo “à beira do abismo” trazido pelo contato, podemos afirmar com convicção que somos povos íntegros em sua composição e queremos estar a serviço do Brasil.

Uma última palavra: são os “índios”, brasileiros? Que tal desentortar o pensamento e inverter a pergunta: serão os brasileiros, “índios”? Será que a ordem dos fatores irá alterar o produto? Não saberia dizer, mas o que observo é que há um abismo entre o ser e o não-ser ou entre o não-ser e o ser. Nesse duelo, os indígenas têm levado a pior.

Texto nº 3 (três) da série Mundurukando.

Observações: 1) Trechos em itálico, grifos de Daniel Munduruku; trechos em negrito, grifos nossos. 2) Transcrevemos o artigo da forma como foi publicado no blogue do escritor.


Cabeçalho do blogue do escritor

“Max Loves Cupcakes”, livro de Ligia Carvalho

Ligia Carvalho faz parte do grupo de brasileiros emigrados. Ela se estabeleceu no Canadá e vive na cidade de Woodstock, em New Brunswick.

Ligia Carvalho

Mãe de três meninos, projetou parte de suas experiências na cozinha, cozinhando com seus filhos, no livro “MaxLoves Cupcakes”, publicado em 2017. Ligia quis oferecer a seus leitores uma narrativa que incorpora não só um apreço pelo convívio familiar, mas ainda uma preocupação com noções de segurança que devem ser observadas quando crianças participam do preparo de alimentos.

Livro infantil

Informações adicionais sobre a autora podem ser encontradas em uma entrevista que ela concedeu ao Brazilian Wave, disponível a seguir:  

Entrevista com Ligia Carvalho, por Brazilian Wave

Por meio de seu site pessoal, Lígia vende o livro em questão.

Dados quantitativos sobre a emigração brasileira podem ser encontrados nestes gráficos do Nexo, ao mesmo tempo em que este artigo de Helion Póvoa Neto procura dar conta de como a emigração brasileira tem sido retratada pela imprensa. A conferir.