Daniel Munduruku + São Paulo = ancestralidade e literatura

Daniel Munduruku é um escritor brasileiro pertencente à etnia indígena munduruku. Nascido no Pará, fez os cursos de mestrado e de doutorado na cidade de São Paulo, cidade que pretendeu homenagear, em 2017, quando ela completava 463 anos. Na ocasião, Daniel se filmou lendo o prefácio de seu livro “Crônicas de São Paulo: Um olhar indígena”, publicado pela editora Callis, em 2004. Nesta publicação, o escritor trata de alguns bairros da cidade que possuem nomes indígenas, regiões por onde já perambulou e das quais se aproximou mais via pesquisa. Nesse processo, Daniel aproveitou para refletir sobre seu próprio lugar em São Paulo ao mesmo tempo em que procurou estar em sintonia com ancestrais paulistanos.

Cristina Bailey e Regina Zilberman, entrevistando Daniel em 2010, partem de uma referência a “Crônicas de São Paulo […]” para perguntar a ele “de que modo ‘um olhar indígena’ sobre a realidade difere de um olhar ‘negro’ ou [de] um olhar ‘branco’?” A entrevista merece ser lida por todos que desejarem se familiarizar, ainda que de forma sucinta, com o modo como o escritor percebia a si e a elementos da sociedade brasileira na época. Os interessados em questões migratórias se atentarão, por exemplo, a sua menção a Eliane Potiguara, a quem reconhece “pela coragem que sempre teve ao escrever sobre a diáspora indígena, sobretudo dos indígenas nordestinos”. (Para outras indicações de textos produzidos por ou sobre indígenas, parece viável recorrer à seleção feita por Janice Cristine Thiél a pedido da Carta Educação.)


Abaixo, seguem dois textos de Munduruku, uma crônica do livro “Crônicas de São Paulo: Um olhar indígena”, por meio do qual a cidade de São Paulo é lida por alguém que passa a habitá-la, no processo estabelecendo conexões, identificando similaridades e diferenças, quiçá, complementaridades. E, na sequência, um texto publicado no blogue do escritor, em que ele lida com as ideias de pertencimento e de identidade e nos indica as expressões mais adequadas para fazermos referência aos originários do Brasil.

Desejamos a todos uma boa leitura! E não se esqueçam de compartilhar este post com os amigos, de perto ou de longe!

Tatuapé – o caminho do tatu

Uma das mais intrigantes invenções humanas é o metrô. Não digo que seja intrigante para o homem comum, acostumado com os avanços tecnológicos. Penso no homem da floresta, acostumado com o silêncio da mata, com o canto dos pássaros ou com a paciência constante do rio que segue seu fluxo rumo ao mar. Penso nos povos da floresta.

Os índios sempre ficam encantados com a agilidade do grande tatu metálico. Lembro de mim mesmo quando cheguei a São Paulo. Ficava muito tempo atrás desse tatu, apenas para observar o caminho que ele fazia.

O tatu da floresta tem uma característica muito interessante: ele corre para sua toca quando se vê acuado pelos seus predadores. É uma forma de escapar ao ataque deles. Mas isso é o instinto de sobrevivência. Quem vive na mata sabe bem lá dentro de si, que não se pode permitir andar desatento, pois corre um sério perigo de não ter amanhã.

O tatu metálico da cidade não tem este medo. É ele que faz o seu caminho, mostra a direção, rasga os trilhos como quem desbrava. É ele que segue levando pessoas para os seus destinos. Alguns sofrem com a sua chegada, outros sofrem com sua partida.

Voltei a pensar no tatu da floresta, que desconhece o próprio destino, mas sabe aonde quer chegar. Pensei também no tempo de antigamente, quando o Tatuapé era um lugar de caça ao tatu. Índios caçadores entravam em sua mata apenas para saber onde estavam as pegadas do animal. Depois eles ficavam à espreita daquele parente, aguardando pacientemente sua manifestação. Nessa hora – quando o tatu saía da toca – eles o pegavam e faziam um suculento assado que iria alimentar os famintos caçadores.

Voltei a pensar no tatu da cidade, que não pode servir de alimento, mas é usando como transporte para a maioria das pessoas poder encontrar seu próprio alimento. Andando no metrô que seguia rumo ao Tatuapé, fiquei mirando os prédios que ele cortava como se fossem árvores gigantes de concreto. Naquele itinerário eu ia buscando algum resquício das antigas civilizações que habitaram aquele vale. Encontrei apenas urubus que sobrevoavam o trem que, por sua vez, cortava o coração da Mãe Terra como uma lâmina afiada. Vi pombos e pombas voando livremente entre as estações. Vi um gavião que voava indiferente por entre os prédios. Não vi nenhum tatu e isso me fez sentir saudades de um tempo em que a natureza imperava nesse pedaço de São Paulo habitado por índios Puris. Senti saudade de um ontem impossível de se tornar hoje novamente.

Pensando nisso deixei o trem me levar entre Itaquera e o Anhangabaú. Precisava levar minha alma ao princípio de tudo.

A crônica em questão foi divulgada nos sites de Ailton Krenak e de Margarida Caetano.


Usando a palavra certa pra doutor não reclamar

Na reflexão anterior falei sobre os equívocos que cercam a palavra índio. Fiz uma provocação e tenho certeza que muitas pessoas, especialmente professores, ficaram com a “pulga atrás da orelha”. Se assim aconteceu, alcancei meu objetivo. A inquietação é já um princípio de mudança. Ficar incomodado com os saberes engessados em nossa mente ao longo dos séculos é uma atitude sábia de quem se percebe parte do todo.

É sabido que esta palavra tem, às vezes, um quê de inocência em quem a usa. Tem quem a utiliza conscientemente também. Sabe que se trata de uma atitude política e fica mais fácil para os interlocutores entenderem do que estão falando. Aliás, esta palavra foi devidamente utilizada pelo movimento indígena no início dos anos 1970. Foi uma forma de mostrar consciência étnica. Antes disso não havia uma consciência pan-indígena por parte dos povos nativos. Eram grupos isolados em suas demandas políticas e sociais. Cada grupo lutava por suas próprias necessidades de sobrevivência. Somente depois que começaram a encontrar os outros grupos durante as famosas assembléias indígenas – patrocinadas pela Igreja católica, através do recém criado Conselho Indigenista Missionário – CIMI – é que as lideranças passaram a ter clareza de que se tratavam de problemas comuns a todos os grupos. A partir disso o termo índio passou a ter uma ressignificação política interessante. Notem, no entanto, que foi um termo usado na relação política com o estado brasileiro. Cada grupo continuou a se chamar pela própria denominação tradicional. Isso não significou abrir mão do jeito próprio de se chamar. Quando muito, chamavam para (sic.) os outros grupos ou pessoas indígenas utilizando o termo parente.

Aqui caberia outra reflexão que deverá vir brevemente. No entanto, devo deixar claro que o termo parente é usado pelos indígenas para todos os seres (vivos ou não-vivos). Chamar alguém de parente é colocá-lo numa rede de relações que se confunde com a própria compreensão cosmológica ancestral. Mesmo na língua portuguesa podemos observar que se trata de uma palavra que une concepções (par+ente) que denota um envolvimento que permite compreendermos que dois ou mais seres se juntam numa rede consangüínea. Do ponto de vista indígena isso vai além da consaguinidade e se insere numa cosmologia cuja crença coloca todos os seres (entes) numa teia de relações. Somente neste contexto é possível compreender a intrínseca relação dos indígenas com a natureza. Isso é, no entanto, assunto para outra conversa.

Até aqui tenho usado outra palavra para referir-me aos povos ancestrais. Ora eu uso nativo, ora indígena. Qual seria a certa? Ambas estão correta (sic.) para referir-se a uma pessoa pertencente ao um
(sic.) povo ancestral. Por incrível que possa parecer não há relação direta entre as palavras índio e indígena, embora o senso comum tenha sempre nos levado a crer nisso. Basta um olhadela (sic.) num bom dicionário que logo se perceberá que há variações em uma e noutra palavra. No duro mesmo os dicionários têm alguma dificuldade em definir com precisão o que seria o termo índio. Quando muito dizem que é como foram chamados os primeiros habitantes do Brasil. Isso, no entanto, não é uma definição é um apelido e apelido é o que se dá para quem parece ser diferente de nós ou ter alguma deficiência que achamos que não temos. Por este caminho veremos que não há conceitos relativo (sic.) ao termo índio, apenas preconceito: selvagem, atrasado, preguiçoso, canibal, estorvo, bugre são alguns deles. E foram estas visões equivocadas que chegaram aos nossos dias com a força da palavra.

Por outro lado o termo indígena significa “aquele que pertence ao lugar”, “originário”, “original do lugar”. Se pode notar, assim, que é muito mais interessante reportar-se a alguém que vem de um povo ancestral pelo termo indígena que índio (sic.). Neste sentido eu sou um indígena Munduruku e com isso quero afirmar meu pertencimento a uma tradição específica com todo o lado positivo e o negativo que essa tradição carrega e deixar claro que a generalização é uma forma grotesca de chamar alguém, pois empobrece a experiência de humanidade que o grupo fez e faz. É desqualificar o modus vivendis dos povos indígenas e isso não é justo e saudável.

Outra palavrinha traiçoeira e corriqueiramente usada para identificar os povos indígenas é tribo. É comum as pessoas me abordarem com a pergunta: qual é sua tribo? Normalmente fico sem jeito e acabo respondendo da maneira tradicional sem muita explicação. Sei que é um conceito entrevado na mente das pessoas e que só vai sair mediante muita explicação por muito tempo.

Afinal, o que tem de errado com a palavra? A antiga ideia de que nossos povos são dependentes de um Povo maior. A palavra tribo está inserida na compreensão de que somos pequenos grupos incapazes de viver sem a intervenção do estado. Ser tribo é estar sob o domínio de um senhor ao qual se deve reverenciar. Observem que essa é a lógica colonial, a lógica do poder, a lógica da dominação. É, portanto, um tratamento jocoso para tão gloriosos povos que deveriam ser tratados com status de nações uma vez que têm autonomia suficiente para viver de forma independente do estado brasileiro. É claro que não é isso que se deseja, mas seria fundamental que ao menos fossem tratados com garbo.

Se não pode chamá-los de tribo, como chamá-los? Povo. É assim que se deveria tratá-los. Um povo tem como característica sua independência política, religiosa, econômica e cultural. Nossa gente indígena tem isso de sobra e ainda que estejamos vivendo “à beira do abismo” trazido pelo contato, podemos afirmar com convicção que somos povos íntegros em sua composição e queremos estar a serviço do Brasil.

Uma última palavra: são os “índios”, brasileiros? Que tal desentortar o pensamento e inverter a pergunta: serão os brasileiros, “índios”? Será que a ordem dos fatores irá alterar o produto? Não saberia dizer, mas o que observo é que há um abismo entre o ser e o não-ser ou entre o não-ser e o ser. Nesse duelo, os indígenas têm levado a pior.

Texto nº 3 (três) da série Mundurukando.

Observações: 1) Trechos em itálico, grifos de Daniel Munduruku; trechos em negrito, grifos nossos. 2) Transcrevemos o artigo da forma como foi publicado no blogue do escritor.


Cabeçalho do blogue do escritor

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