Lina Meruane é a autora do romance “Sangue no olho”, texto discutido no 7º encontro do Leituras dos Girassóis. O livro, que cativou os membros do clube, aterrissou no Brasil como resultado da intervenção de Livia Deorsola, editora brasileira especializada em literatura hispano-americana. Sob os seus cuidados, a extinta editora Cosac Naify publicou a primeira edição do texto que, em 2018, entrava para o catálogo da SESI-SP editora, assim permanecendo ao alcance do público brasileiro.
Meruane nasceu no Chile e tem ascendentes palestinos. Vive hoje nos Estados Unidos, a partir de onde concilia sua atuação no campo da literatura com a carreira de professora universitária.
Como toda leitora, tem seus livros prediletos – veja aqui e aqui. Enquanto alguém envolvida com a produção e o ensino de literatura latino-americana, tem escritores brasileiros sob o radar, como Clarice Lispector, que é ucraniana de nascimento, e Nélida Piñon, a imortal filha de espanhóis. Da primeira, Meruane se dedicou a analisar o conto “Legião estrangeira”. À segunda, fez referência em seu ensaio “Contra os filhos”, lançado no Brasil pela editora todavia, texto lido e comentado por escritores como Tércia Montenegro, Maria Clara Drummond e Sérgio Tavares.
A seguir listamos algumas das entrevistas concedidas por Meruane, aproveitando para destacar trechos que tratam de sua relação com a América Latina, de como entende a literatura, de seu romance “Sangue no olho” e, finalmente, de como se percebe. Como incentivo à leitura, ressaltamos que “Sangue no olho” é um ótimo romance. E que mesmo nas ocasiões em que o entrevistador não esteve à altura da tarefa, as considerações de Meruane acrescentam, nos instigando, portanto, a procurar por seus escritos e a demandar por mais traduções deles.
Vejamos:
- Sobre a relação da Lina migrante com a América Latina:
Você mora nos EUA há anos. Você se enxerga mais próxima da literatura latino-americana ou da tradição norte-americana?
Sempre prestei muita atenção à produção literária da América Latina, e me mudei para Nova York para fazer um doutorado em literatura latino-americana. Essa é, portanto, a tradição que conheço melhor, e com a qual continuo dialogando. Leio certos autores norte-americanos (e vejo suas peças e seus filmes), mas não mais do que os europeus de modo geral, e com certeza leio menos norte-americanos do que franceses. Mas não importa tanto o lugar de onde se escreve: o que me interessa em um autor não é seu local de origem e sim a sua maneira de entender o literário, o modo de escrever, sua relação com certas tradições. Para mim, Faulkner é tão grande quanto Beckett, Woolf como Gertrude Stein, Mishima como Celine etc. No contemporâneo os temas e os ecos da literatura de nosso continente ressoam mais em mim, e minha escrita se articula com e certamente contra essa tradição. (1)
Como marca sua literatura o fato de viver fora de seu país?
A maneira que eu percebo é um pouco distinta da sua, eu vejo os escritores do meu tempo se movendo em muitas direções e para destinos distintos. Há um dinamismo não tão simples de ser traçado nem geográfica nem historicamente… Eu pertenço a uma família de migrantes; está na minha tradição estar inscrita no nomadismo e um tema recorrente quando nos encontramos é… a situação de nossas malas! Há sempre uma maleta ao redor da conversa e também, isso percebi muito depois, em meus romances. Sempre a protagonista está viajando, e a distância lhe permite ver o que deixa de maneira crítica. É como se as protagonistas de meus romances precisassem ver de longe para ver bem. (2)
Cortázar declarou que um dia se deu conta que ser um escritor latino-americano significava fundamentalmente que havia de ser um latino-americano escritor: havia de inverter os termos e a condição de latino-americano, e colocar isso também no trabalho literário. Como é ter o papel de uma escritora chilena em Nova York?
Cortázar foi, durante anos, um escritor cem por cento argentino e teve que se converter em latino-americano como acontece com muitos de nós quando vivemos no exterior. Do exterior, o impulso para juntarmos todos em um mesmo saco latino-americano é muito forte, simplifica as coordenadas e anula as diferenças, permite as generalizações. Eu continuo me sentindo uma escritora chilena, e reivindico acima de tudo política e solidariamente a minha latino-americanidade, mas estou permanentemente sub-estimando o fato de que há muita disparidade interna, não somente entre os países como também entre classes e etnias, verdadeiras batalhas silenciosas às quais se deve prestar atenção. Eu gostaria de acreditar que o que posso fazer neste território é ampliar um pouco os espaços da literatura latino-americana através do ensino das nossas culturas e literaturas, ou pelas conversas sobre livros maravilhosos produzidos em pontos diversos do continente e por escritores que sendo latino-americanos vivem no exterior, e também apoiando a possibilidade de que continuem falando as nossas diversas línguas nos Estados Unidos ao invés de passarmos todos à língua dominante. (3)
- Sobre a literatura:
Há na literatura alguma ponte de salvação?
[…] O que penso é que a missão da literatura não é a da mobilização e, nem sequer, a da empatia com o outro: são efeitos desejáveis mas esta não é a sua missão, porque se a literatura se dedica a isso acaba se tornando propaganda com a pretensão de convencer. A literatura deve colocar perguntas e não resolvê-las, deve nos levar a pensar inclusive em questões contraditórias, deve nos levar a aprofundar sobre os conflitos humanos. Assim algo pode acontecer mas este algo profundo é raramente imediato: é um efeito a longo prazo e nunca, a salvação. (3)
Precisamente, todo o romance está imerso em debates éticos. Qual é o limite ético da literatura?
Eu queria dizer algo que fosse muito ético, mas lamentavelmente não vejo limites éticos dentro da literatura. Se quisermos ver cara a cara a monstruosidade que somos, há que se mostrar precisamente esses lugares onde toda a ética foi perdida, há que insistir nessas zonas escuras, ambíguas, remexer nesses limites incômodos, às vezes intoleráveis. Talvez aí se possa extrair, por oposição, uma ética, e um escritor ou escritora esperaria que essa tarefa cumpram os leitores: a de reagir ante o que se lê, a de refletir de maneira mais complexa sobre o que se coloca, a de se propor a participar eticamente, desde essa terrível claridade, do cenário social. (2)
- Sobre o romance “Sangue no olho”:
Sangue no olho é sua primeira obra publicada no Brasil. Como ela se relaciona com o restante de sua obra ainda inédita em português?
Todos os meus livros, penso, são diferentes; cada um foi respondendo, ou tentando responder, a uma pergunta que, no momento, era urgente. Comecei trabalhando no território da infância feminina, examinando as maneiras como as meninas são educadas para serem mulheres, o disciplinamento feroz pelo qual passamos: eu estava interessada em mostrar essa zona obscura e indisciplinada da infância. Nisto se encaixam os meus três primeiros livros escritos no Chile, e talvez não seja tão estranho o fato de que eu os escrevi neste país, pois a disciplina também faz parte da ditadura na qual cresci. A saída do Chile há quinze anos introduziu novos cenários (Chile e Estados Unidos como paisagens distintas, mas também como vasos comunicantes. Bem ou mal, o meu país foi um laboratório de experimentos neoliberais dos anos oitenta) e novos temas, o que você mencionou antes, o da doença. Talvez o que todos os meus livros tenham em comum é que no centro há o corpo de uma mulher que resiste a certas normas, que leva as lógicas imperantes a extremos que podem ser prazerosos e redentores, mas também sinistros. (1)
Caso houvesse uma inversão de papéis em Sangue no olho e fosse a protagonista que cuidasse do outro, como seria? As mulheres se veem em posição mais vulnerável quando acometidas por uma doença, ou o gênero não importa?
O gênero importa muito. Historicamente, as mulheres prezam o sacrifício como um valor: a mãe deve se sacrificar por seu filho, o pai contribui; a esposa se sacrifica pelo marido mas não deve esperar o mesmo de volta; a filha se sacrifica pelos pais e, sobretudo, pela mãe porque lhes deve a vida enquanto seus irmãos se apoiam nela… Isso está poderosamente inscrito na cultura e se reforça o tempo todo através de discursos múltiplos sociais. Quando as mães conseguem dizer não aos pedidos de seus filhos sem sentirem culpa ou serem culpadas? Quando, na intimidade de um casal, a mulher logra colocar as suas necessidades acima da dos outros como quase sempre fazem os outros? Não são as filhas que se encarregam de cuidar dos pais idosos mais frequentemente? Não digo que sempre seja assim, o que digo é que custa mais às mulheres deixarem de agir assim porque foram educadas para servir e para sentir que os seus desejos e talentos possuam menos valor. Isso segue sendo assim e é difícil enxergar. Quando tenho alguma dúvida na minha vida pessoal, sempre, como regra, inverto a situação e penso no contrário: o que fariam o meu parceiro, o meu irmão, o meu pai ou o que faria nesta situação se eu fosse um homem? Não é que queira ser um homem, isso nem me passa pela cabeça. Nada mais é do que um exercício que me permite ver até que ponto obedeço ao chamado de uma regra cultural retrógrada e reajo a um desejo. Para não me prolongar, foi isso precisamente o que fiz ao escrever o meu romance, dar uma volta na relação do gênero e ver a situação clássica desde a sua inversão. Acredito que o que surpreende aos leitores é precisamente esta inversão: aí se enxerga as coisas muito melhor, e elas assustam muito mais. (3)
Tu último libro, Sangre en el ojo, fue publicado en distintos países de Europa como Francia, Alemania, Reino Unido, Italia y Holanda. ¿Cuáles crees que son las principales diferencias entre la recepción de tu obra en Europa y en América Latina?
Es difícil saber, yo no ando a la caza de las reseñas de mis libros pero mi impresión es que no hay una distinción clara entre Europa y América Latina, ese trazo continental es demasiado grueso. Hay muchas diferencias culturales e ideológicas y expectativas literarias entre los países de Europa así como entre los países americanos. Y además, en cada uno de esos lugares hay importantes diferencias de género, clase y raza, que se reflejan en la lectura, entonces no lo sé. Solo anecdóticamente te puedo comentar que mientras que en Chile nadie leyó el contenido político de mi novela, en Italia no dejaron de reparar en los escasos momentos en que se comenta la relación entre cuerpo enfermo y dictadura, y mientras en Brasil algunos lectores celebraron la escena sexual en el avión, nadie más dijo nada, al menos que yo sepa sobre esto. Y en las sucesivas presentaciones de mi libro, hay lugares donde el público percibe el humor negro del libro y otros donde la respuesta es sería y acongojada. (4)
A protagonista disse em uma conversa com sua professora que só há um escritor cego. Imagino que tenha pensado em Borges, mas há na literatura ocidental certa corrente da literatura da cegueira. Você pensou nessa questão quando escrevia o livro?
Era Borges a figura, com efeito, porque a cegueira de Borges é única. Borges fica cego aos 50 anos, no momento em que começa a ser internacionalmente reconhecido, e fotografado. O rosto de Borges, com a vida perdida, com suas mãos de sábio sobre a bengala, é uma imagem icônica, indelével. É o grande cego da nossa literatura contemporânea. Não é que Lucina não saiba de Homero, de Milton, de Joyce. Então, o que ela quer dizer é que o grande, o contemporâneo, o cego terminal que os latino-americanos recordam é Borges. Por isso você adivinha. (2)
Foi influenciada por algum livro específico de um escritor cego (Borges é uma referência clara), ou sobre a cegueira de modo mais amplo?
[…] Eu tinha lido os livros mais canônicos da cegueira latino-americana, como “Sobre heróis e tumbas”, de Ernesto Sabato, e esse fabuloso conto de Clarice Lispector chamado “Amor”, mas meu romance não surge dessas leituras específicas, e sim da literatura da enfermidade, que enfrentei enquanto escrevia minha tese de doutorado. (5)
- Sobre Lina Meruane:
En tus obras queda en evidencia el papel de la lectura, del ejercicio de la escritura, pero también el de las redes intelectuales y el de los afectos que se forman entre escritores, académicos e investigadores. ¿Se podría decir que el escritor contemporáneo ya no escribe aislado del mundo? ¿Cuál sería el lugar de la escritura y lectura en tu cotidianidad?
Pienso que hay muchas maneras de ser escritor; por resumir un poco y generalizar otro poco, diría que hay tres posiciones. Una es la del quien se plantea el aislamiento, el silencio, el bajo perfil que a veces es una decisión literaria y otras responde a la timidez o a la fobia social. Otra es la de quien piensa la escritura como plataforma mediática para obtener un estatus de celebridad, ahí hay mucha sobrexposición que puede acabar por distorsionar la propia escritura al volverla un medio para lograr un fin de orden publicitario. Ese es el lugar más peligroso y entre los dos extremos yo valoro más el del retraimiento de quien escribe por una necesidad íntima. Lo que me pasa a mí es que aunque necesito mucho silencio y tiempo para escribir, soy un animal social. Me da curiosidad la gente, me atrae hablar con gente y escucharla, y por supuesto me disgusta a ratos pero hay algo que me importa en el diálogo y en la discusión. Por eso formo redes, por eso presento mis libros, me importa la sala de clases donde la lectura, la escritura y la reflexión provocan algo fresco, por eso escribo ensayos que pretenden interpelar y columnas de opinión (aunque muy pocas ahora porque cansa mucho esa búsqueda de nuevos temas e ideas, yo no tengo tantas ideas, me conformo con tener unas poquitas, necesito tiempo para reflexionar y posicionarme en lo que ocurre cotidianamente). Todo eso es el espacio donde ocurre lo político y eso para mí es central en mi obra y en mi vida de los afectos. (4)
Ao discutir Ensaio sobre a cegueira, José Saramago declarou: “Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso”. Ao escrever Sangue no olho, você compartilha desta angústia sentida por Saramago?
São raras as vezes em que penso no leitor enquanto escrevo, eu não saberia dizer quem é o meu leitor… e muito menos como é, o que quer, o que busca. Por melhor ou pior que seja, eu sou a única leitora que posso imaginar e a única que posso agradar além de incomodar. Isso me dá uma enorme liberdade na hora de escrever, uma liberdade para ir até onde deva ir um romance mesmo quando este destino seja extremamente estranho e cruel. Nunca tratei com pena a leitora que eu sou, busco levar o romance até certos limites, fazer ver certas coisas que nem eu sei quais são quando começo a escrever. Por outro lado, sinceramente não acredito que os leitores adultos não saibam o quão cruéis nós, os seres humanos, somos. Não é essa a realidade que poderiam descobrir nem no meu romance ou em algum outro. Tenho a impressão de que não é a crueldade e sim os modos sofisticados em que, às vezes, aparece, os meios utilizados, as perguntas que nos obriga a fazer. Outra diferença que sinto perante esta afirmação de Saramago é que não sofro enquanto escrevo, por mais que a cena seja terrível. Não sofro com os personagens, não sofro com as suas digressões: toda a minha energia se volta para o material da escrita e não na sua profundidade moral. Se a frase não sai, se a cena não tem força, se o personagem não se estrutura, é quando me desespero. Sei que é bem-visto um escritor sofrer ao escrever — é um legado do romantismo, penso às vezes; noutras, penso que sofrer ou dizer que se sofre é uma justificativa necessária ao escritor perante o mundo quando não tem que se levantar de manhã cedo, tomar um ônibus lotado, e passar horas em um escritório ou uma fábrica. Tenho um trabalho em tempo integral, não tão sacrificado quanto o do operário ou do burocrata, é certo, mas talvez porque não preciso destas justificativas, posso dizer que desfruto muito quando tenho a chance de tirar tempo para escrever e encontro sucesso na execução de um texto que alcança até onde deve ir. Isso é o que sinto quando escrevo ficção, o grande prazer da escrita por si só, até quando o que esteja contando seja terrível, sei que se trata de um artifício. Dito isso, reconheço que senti algo bem diferente ao escrever o meu livro sobre a situação palestina, e creio que o sentimento foi assim porque estava falando das vidas reais das pessoas que sofrem e que são violentadas sistematicamente por outras: aí, sim, eu me vi muito comovida e indignada. (3)
Por fim, textos da escritora e afins:
- Um excerto de Sangue no olho (Cosac Naify, 2015)
AMANHÃ
(Cá estou. Lá vou eu. Olhando outra vez pela janela do táxi, com o olhar fixo, tentando, da estrada, captar um pouco do horizonte, a silhueta agora oca de duas torres pulverizadas, a linha do céu mutilada junto ao brilho tênue do rio salpicado de estrelas, o néon do History Channel deslumbrante sobre a água. Vejo tudo sem ver, vejo tudo através da lembrança do já visto ou através dos teus olhos, Ignacio. Os faróis do táxi rasgavam uma leve neblina noturna de papel e metais chamuscados que se negava a se esfumar, grudava no vidro e o embaçava. O turco ultrapassava alguns carros aos trancos, mas também deixava outros nos ultrapassarem, velozes, buzinando. Vocês cochilavam, talvez tenham até caído no sono, embalados pelas inclementes aceleradas e freadas. Acomodei a testa na janela e fechei os olhos até ser sacudida, Ignacio, por tua voz, tão nova em minha vida que às vezes eu demorava a reconhecer como tua, tua voz que, aliás, mudava de tom quando você falava em outra língua. Era uma voz para dar instruções em inglês ao motorista do táxi: que saísse pela próxima exit, que virasse para o oeste, que seguisse em direção à Washington Bridge, ainda acesa no horizonte. Não tínhamos planejado cruzar aquela ponte enferrujada, não estávamos indo para o subúrbio, do outro lado, onde eu morei um dia e para onde nunca pretendi voltar. Estava voltada para o presente, eu, isso era tudo o que eu tinha enquanto deixávamos Julián na esquina do prédio dele e prosseguíamos para o teu, que agora era o nosso. E quando ficamos sozinhos você segurou meu rosto para que eu me virasse e te olhasse. Para que você pudesse me olhar. Teus olhos não percebiam nada de extraordinário, não viam o que havia atrás de minhas pupilas. Foi muito? Muito mais do que antes, falei, sombria, mas talvez amanhã. Amanhã você vai estar melhor. Mas amanhã já era hoje: só faltava clarear e as luzes mortiças serem eclipsadas pelo sol. Coroado com um turbante o turco parou de repente e escorregamos para frente. Não se mova, você disse, e depois senti a porta batendo, e você deve ter dado toda a volta para abri-la para mim, me dar a mão, me avisar que abaixasse a cabeça. Vendo-nos de longe, qualquer um diria que estávamos saindo de outro século, não de um carro. Descemos da máquina do tempo de braços dados e assim subimos a escadaria até o elevador e os cinco andares. Assim avançamos pelo corredor até o tilintar das chaves na fechadura. O ar parado do apartamento nos recebeu. O calor veio de todos os cantos, do chão sem tapetes, das paredes completamente nuas, das infinitas caixas que pareciam cheias de carvão em brasa em vez de livros. Havia dias que empacotávamos as coisas para uma mudança iminente. Por um corredor segui direto para o quarto, você entrou atrás: cuidado, deixei um copo d’água aqui pra você. E nos jogamos na cama e nos abraçamos apesar da umidade e, ungidos de suor, adormecemos. E na manhã seguinte você levantou as persianas e sentou na minha frente esperando eu acordar, não sei se do meu sonho ou da minha vida. Mas eu estava insone havia horas, sem coragem de abrir os olhos. Lina? Levantei uma pálpebra, depois a outra, e para meu espanto havia luz, um pouco de luz, luz suficiente: a sombra sanguinolenta não tinha desaparecido do olho direito, mas a do esquerdo se precipitara para o fundo. Eu só estava meio cega. E por isso aceitei teu café e o levei à boca sem hesitar, por isso até sorri, porque, apesar de tudo. E você estava ali, como outro caolho, sem entender o que tinha acontecido. Não podia calcular a gravidade. Não se animava a fazer todas as perguntas. Guardava-as para si, amarrotadas, como agora, nos bolsos.)
- Um depoimento sobre o ensaio “Contra os filhos” (2014):
- O ensaio “Volverse Palestina” (2014):
- O artigo “Cómo viven los jóvenes el derrumbe de las libertades bajo la dictadura de Augusto Pinochet?” (2017)
- Lina Meruane é listada ao lado de outros escritores que produziram textos literários que remetem à cegueira.
- O conto “Amor”, de Clarice Lispector.
À leitura!
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