Emigrantes portugueses na construção da literatura lusógrafa contemporânea

Rumamos a Dortmund, na Alemanha, para conhecer uma iniciativa da Oxalá Editora, que se dedica à descoberta e à publicação de escritores portugueses emigrados. Referimo-nos à publicação, em 2018, do livro “Contos da Emigração: Homens que sofrem de sonhos”. No site da editora, encontramos uma entrevista do responsável pelo projeto, o jornalista (?) Mário dos Santos, conduzida por Nuno Gomes Garcia, autor de um dos textos da coletânea. Abaixo, ela surge acompanhada por outra, do próprio Nuno, em que ele comenta sobre o texto que escreveu.

Nuno Gomes Garcia conversa com Mário Dos Santos

«Contos da emigração: Homens que sofrem de sonhos» é o mais recente livro, uma coletânea de 12 contos, idealizado por Mário dos Santos, fundador e editor da Oxalá Editora, uma chancela orientada para a Diáspora. Os direitos da obra reverterão em favor da Plataforma de Apoio aos Refugiados.

Sediada em Dortmund, na Alemanha, a Oxalá Editora tem por objetivo fazer chegar a voz dos 5 milhões de Portugueses que vivem dispersos pelo estrangeiro aos 10 milhões de Portugueses que vivem em Portugal, distribuindo, para esse efeito, os livros tanto dentro como fora de Portugal.

Este livro, que mistura dois autores clássicos portugueses – Eça de Queirós e José Rodrigues Miguéis – com dez autores contemporâneos (nove dos quais expatriados), explora os caminhos da emigração, tanto os da década de 1960 como os mais recentes que datam do período da crise pós-2008.

Uma obra rica, que se alicerça na variedade de registo de cada autor – alguns deles já consagrados -, indo desde a ruralidade do interior português à urbanidade londrina ou alemã; do drama à sátira, explorando o momento do «salto», a dolorosa adaptação a diferentes culturas e idiomas, passando pela discriminação e a segregação sofridas na terra de acolhimento ou, o reverso da medalha, pelos surtos xenófobos e racistas contra outras comunidades, preconceitos extremistas que alguns emigrantes portugueses também partilham.

Mário, antes de nos debruçarmos sobre o livro, falemos um pouco do teu percurso. Tu fundaste o Portugal Post, um jornal mensal publicado na Alemanha em língua portuguesa, e há pouco decidiste dedicar-te inteiramente à Oxalá Editora. O que é que te levou a mudar de rumo?

Sim, de facto, estive à frente do jornal durante 25 anos. Achei que ao fim desses anos seria o momento de passar a pasta, digamos assim, a alguém que desse continuidade a um jornal com história e muito importante para a vida da Comunidade na Alemanha. Durante o meu percurso no jornal, houve ocasiões em que pessoas se me dirigiam dizendo que tinham coisas escritas (poesia, contos, histórias da sua vida…) na gaveta e que gostariam de as verem publicadas. Algumas dessas pessoas viviam na Alemanha, mas também havia gente de outros países que me diziam que gostariam de ver os seus escritos publicados e me desafiavam para o fazer. Percebi então que fazia sentido uma editora vocacionada para os autores da Diáspora. Em 2015, decidi criar a Oxalá Editora pensando já que daí a pouco tempo entraria no gozo da reforma e que esse seria um tempo para me dedicar àquilo de que sempre gostei, os livros.

A editora que também tem edições bilingues, em português e em alemão, veio de facto preencher um vazio que era evidente. Como editor, qual é o teu principal objetivo: fazer chegar a voz da diáspora a Portugal ou promover a literatura portuguesa na Alemanha?

Sim, há edições bilingues. Gostaria de destacar a tradução para alemão da obra de Sophia de Melo Andresen, «A menina do mar». Mas a minha principal preocupação são os autores que vivem no exterior, ou seja, a Oxalá Editora não se remete apenas à Alemanha. Há, inclusivamente, propostas de parceria provenientes de outros países. A ideia é ter uma casa editora que perceba a realidade da Diáspora. Sabes tão bem como eu que em Portugal não se dá a devida importância aos Portugueses que vivem no estrangeiro, sejam eles poetas ou carpinteiros; cientistas ou concierge… Mas também é verdade que hoje se considera mais «quem vive lá fora», apesar dos preconceitos face aos emigrantes. O meu objetivo é descobrir bons autores da Diáspora, vivam eles nas Américas, na Europa ou seja lá onde for, publicá-los e divulgá-los em Portugal. Muitos têm, digamos assim, esse sonho, o de serem reconhecidos, não só nas Comunidades onde vivem, mas também, por questões sentimentais, de ligação ao país, a Portugal, onde gostariam de ver os seus livros a circular. Isso é um pouco difícil, sabemos. Quer dizer, nalguns casos até não é tão difícil assim.

Falemos do livro, então, que tem um título que resume em poucas palavras a essência do que é ser emigrante. Mas diz-nos quais os escritores que participam na coletânea. Vivem todos fora de Portugal?

Com a exceção da Ana Cristina Silva, todos os outros vivem fora de Portugal. Eu convidei-a porque ela tem uma crónica no Portugal Post.

E a Oxalá também publicou «A mulher transparente», um dos romances da Ana Cristina Silva.

Exatamente. Os outros autores vêm do Reino Unido, de França e da Alemanha. A minha preocupação foi juntar autores que vivem e sentem a diáspora e, olhando para quem pudesse representar, digamos assim, o espírito do livro, convidei a Gabriela Ruivo Trindade, vendedora do prémio Leya e que vive em Londres. Falei ao Nuno Gomes Garcia, ou seja, contigo, também com obra publicada e reconhecida. Falei ainda com uma autora que vive em Hamburgo, a Cristina Torrão, e com o Miguel Szymanski, um autor que tem a particularidade de se sentir emigrante alemão em Portugal e emigrante português na Alemanha. Mas o livro vale por todas as histórias lavradas pela caneta e no sentir do que é estar distante de Portugal.

Os contos são todos inéditos?

Sim, os contos dos autores vivos são todos inéditos.

E por que razão optaste por juntar a voz de dois clássicos da literatura à voz de dez escritores contemporâneos?

Só para tentar dizer que também os escritores clássicos viveram fora do país. Eles foram tão emigrantes como nós. Muita da obra do José Rodrigues Miguéis, por exemplo, incide sobre temáticas da emigração. E o Eça de Queirós…

O Eça foi Cônsul em Paris.

Sim, foi, de certa forma, emigrante, tendo falecido em Paris, como se sabe. Essa ideia surgiu-me assim muito espontânea. Mostrar que os problemas da emigração são muito parecidos independentemente da época. O que eu espero é que as pessoas que leiam este livro se apercebam que mesmo autores que ficaram na História da Literatura viveram as situações que os emigrantes de hoje vivem.

Esperas uma boa receção da obra por parte do público português?

A obra também vai ser distribuída em Portugal pela Europress, a empresa distribuidora com a qual a Oxalá colabora. E na Diáspora, temos contactos com algumas livrarias e vamos também fazer a promoção da obra em muitos países e em quase todos os continentes. A recepção e a aceitação que o livro dependerá de muitos fatores. Mas o que posso desde já dizer é que vale a pena ler este livro para melhor perceber os Portugueses das sete partidas do mundo.

Mário, para terminarmos, fala-nos de um livro de que tenhas gostado.

Assim de repente, sugiro o Primo Levi.

Qual? O “Se isto é um homem?”

Exatamente! As pessoas que vivem no nosso tempo deveriam ler esse livro, que retrata o sofrimento das vítimas do Holocausto, num momento em que os governantes dos grandes países amedrontam o mundo com discursos belicistas e perigosos para a humanidade.

Os contos da coletânea:

  • «A salto» de Ana Cristina Silva
  • «Vida adiadas» de Cristina Torrão
  • «Um poeta Lírico» de Eça de Queirós
  • «Cab driver» de Gabriela Ruivo Trindade
  • «O apelo do vale» de Isabel Mateus
  • «O viajante clandestino» de José Rodrigues Miguéis
  • «Uma história verdadeira» de Luísa Coelho
  • «A minha bicicleta verde» de Miguel Szymanski
  • «O sobrinho» de Nuno Gomes Garcia
  • «Partida largada fugida» de Rita Sousa Uva

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris. Publicada em 26/03/2018 em https://www.oxalaeditora.com/conto-iemanja/nuno-gomes-garcia-conversa-com-m%C3%A1rio-dos-santos/. Acesso em: 05 out. 2019.


Capa da coletânea

Cap Magellan conversa com Nuno Gomes Garcia

Cap Magellan: Como acolheste o convite que te foi feito para participares na coletânea?

Nuno Gomes Garcia: Pensei imediatamente que era por uma boa causa. Não apenas porque os direitos revertem a favor da Plataforma de Apoio aos Refugiados, mas também por permitir a bons autores, quase todos expatriados, escreverem sobre um tema que inexplicavelmente é pouco tratado na literatura contemporânea portuguesa: a emigração. Um país que possui um terço dos seus cidadãos a viver fora do território português e que finge que a emigração não é uma componente estrutural da sua sociedade há mais de 500 anos está condenado a ser um país que não se compreende a ele próprio. Se Portugal tem 5 dos seus 15 milhões de nacionais a viver no estrangeiro, esse facto tem de se refletir obrigatoriamente na sua matriz cultural, nomeadamente na literatura.

CM: Porquê utilizar a metáfora dos legumes?

NGG: A minha escrita, acho que é visível em todos os romances que escrevi, leva-me sempre a expor as minhas inquietudes através da sátira e do “tremendismo”, no exagero. Ora, uma das coisas que mais me inquieta hoje na Europa é o regresso às questões identitárias, o recrudescimento dos nacionalismos protofascistas presentes em alguns governos e de outros componentes abertamente fascistas em algumas franjas da sociedade.

Como, a meu ver, não existe nada de mais ridículo, mesmo do ponto de vista da comicidade e do humor, do que um certo povo se sentir superior a outro, ou do que um ser humano odiar outro ser humano por causa da cor da sua pele, por exemplo… tendo isso em vista, eu tentei fazer a experiência de transportar toda essa problemática para o mundo dos vegetais.

Só para que o leitor compreenda que ver uma cenoura a odiar uma beterraba, ambas antropomorfizadas, por causa da cor da sua “casca” é tão absurdo como um humano odiar outro humano por causa da cor da sua pele, da religião ou da orientação sexual.

CM: A emigração é somente feita de mulheres e homens que sofrem de sonhos? Não achas que pode ser um pouco miserabilista como forma de apresentar a emigração?

NGG: Não creio que se possa reduzir os dez contos ao título da coletânea, que é por natureza subjetivo e que tem um certo pendor poético. O livro contém dez maneiras diferentes de olhar para o fenómeno da emigração. Dez contos que mostram as complexidades ligadas ao simples facto de trocar uma realidade social por outra. Se há emigrantes que realizam os seus sonhos, outros há que vivem autênticos pesadelos. O sofrimento, tal como as alegrias, são sentimentos inerentes à vida, logo também inerentes à emigração.

Disponível em: http://capmagellan.com/a-coletanea-contos-da-emigracao-chegou-as-livrarias/. Acesso em: 05 out. 2019.

Que possamos logo encontrar «Contos da emigração: Homens que sofrem de sonhos» em formato digital e, quiçá, em nossa livraria preferida!

Lina Meruane em entrevistas

Lina Meruane é a autora do romance “Sangue no olho”, texto discutido no 7º encontro do Leituras dos Girassóis. O livro, que cativou os membros do clube, aterrissou no Brasil como resultado da intervenção de Livia Deorsola, editora brasileira especializada em literatura hispano-americana. Sob os seus cuidados, a extinta editora Cosac Naify publicou a primeira edição do texto que, em 2018, entrava para o catálogo da SESI-SP editora, assim permanecendo ao alcance do público brasileiro.

Meruane nasceu no Chile e tem ascendentes palestinos. Vive hoje nos Estados Unidos, a partir de onde concilia sua atuação no campo da literatura com a carreira de professora universitária.

Lina Meruane – Foto de Daniel Mordzinski

Como toda leitora, tem seus livros prediletos – veja aqui e aqui. Enquanto alguém envolvida com a produção e o ensino de literatura latino-americana, tem escritores brasileiros sob o radar, como Clarice Lispector, que é ucraniana de nascimento, e Nélida Piñon, a imortal filha de espanhóis. Da primeira, Meruane se dedicou a analisar o conto “Legião estrangeira”. À segunda, fez referência em seu ensaio “Contra os filhos”, lançado no Brasil pela editora todavia, texto lido e comentado por escritores como Tércia Montenegro, Maria Clara Drummond e Sérgio Tavares.

A seguir listamos algumas das entrevistas concedidas por Meruane, aproveitando para destacar trechos que tratam de sua relação com a América Latina, de como entende a literatura, de seu romance “Sangue no olho” e, finalmente, de como se percebe. Como incentivo à leitura, ressaltamos que “Sangue no olho” é um ótimo romance. E que mesmo nas ocasiões em que o entrevistador não esteve à altura da tarefa, as considerações de Meruane acrescentam, nos instigando, portanto, a procurar por seus escritos e a demandar por mais traduções deles.

Vejamos:

  • Sobre a relação da Lina migrante com a América Latina:

Você mora nos EUA há anos. Você se enxerga mais próxima da literatura latino-americana ou da tradição norte-americana?

Sempre prestei muita atenção à produção literária da América Latina, e me mudei para Nova York para fazer um doutorado em literatura latino-americana. Essa é, portanto, a tradição que conheço melhor, e com a qual continuo dialogando. Leio certos autores norte-americanos (e vejo suas peças e seus filmes), mas não mais do que os europeus de modo geral, e com certeza leio menos norte-americanos do que franceses. Mas não importa tanto o lugar de onde se escreve: o que me interessa em um autor não é seu local de origem e sim a sua maneira de entender o literário, o modo de escrever, sua relação com certas tradições. Para mim, Faulkner é tão grande quanto Beckett, Woolf como Gertrude Stein, Mishima como Celine etc. No contemporâneo os temas e os ecos da literatura de nosso continente ressoam mais em mim, e minha escrita se articula com e certamente contra essa tradição. (1)

Como marca sua literatura o fato de viver fora de seu país?

A maneira que eu percebo é um pouco distinta da sua, eu vejo os escritores do meu tempo se movendo em muitas direções e para destinos distintos. Há um dinamismo não tão simples de ser traçado nem geográfica nem historicamente… Eu pertenço a uma família de migrantes; está na minha tradição estar inscrita no nomadismo e um tema recorrente quando nos encontramos é… a situação de nossas malas! Há sempre uma maleta ao redor da conversa e também, isso percebi muito depois, em meus romances. Sempre a protagonista está viajando, e a distância lhe permite ver o que deixa de maneira crítica. É como se as protagonistas de meus romances precisassem ver de longe para ver bem. (2)

Cortázar declarou que um dia se deu conta que ser um escritor latino-americano significava fundamentalmente que havia de ser um latino-americano escritor: havia de inverter os termos e a condição de latino-americano, e colocar isso também no trabalho literário. Como é ter o papel de uma escritora chilena em Nova York?

Cortázar foi, durante anos, um escritor cem por cento argentino e teve que se converter em latino-americano como acontece com muitos de nós quando vivemos no exterior. Do exterior, o impulso para juntarmos todos em um mesmo saco latino-americano é muito forte, simplifica as coordenadas e anula as diferenças, permite as generalizações. Eu continuo me sentindo uma escritora chilena, e reivindico acima de tudo política e solidariamente a minha latino-americanidade, mas estou permanentemente sub-estimando o fato de que há muita disparidade interna, não somente entre os países como também entre classes e etnias, verdadeiras batalhas silenciosas às quais se deve prestar atenção. Eu gostaria de acreditar que o que posso fazer neste território é ampliar um pouco os espaços da literatura latino-americana através do ensino das nossas culturas e literaturas, ou pelas conversas sobre livros maravilhosos produzidos em pontos diversos do continente e por escritores que sendo latino-americanos vivem no exterior, e também apoiando a possibilidade de que continuem falando as nossas diversas línguas nos Estados Unidos ao invés de passarmos todos à língua dominante. (3)

  • Sobre a literatura:

Há na literatura alguma ponte de salvação?

[…] O que penso é que a missão da literatura não é a da mobilização e, nem sequer, a da empatia com o outro: são efeitos desejáveis mas esta não é a sua missão, porque se a literatura se dedica a isso acaba se tornando propaganda com a pretensão de convencer. A literatura deve colocar perguntas e não resolvê-las, deve nos levar a pensar inclusive em questões contraditórias, deve nos levar a aprofundar sobre os conflitos humanos. Assim algo pode acontecer mas este algo profundo é raramente imediato: é um efeito a longo prazo e nunca, a salvação. (3)

Precisamente, todo o romance está imerso em debates éticos. Qual é o limite ético da literatura?

Eu queria dizer algo que fosse muito ético, mas lamentavelmente não vejo limites éticos dentro da literatura. Se quisermos ver cara a cara a monstruosidade que somos, há que se mostrar precisamente esses lugares onde toda a ética foi perdida, há que insistir nessas zonas escuras, ambíguas, remexer nesses limites incômodos, às vezes intoleráveis. Talvez aí se possa extrair, por oposição, uma ética, e um escritor ou escritora esperaria que essa tarefa cumpram os leitores: a de reagir ante o que se lê, a de refletir de maneira mais complexa sobre o que se coloca, a de se propor a participar eticamente, desde essa terrível claridade, do cenário social. (2)

  • Sobre o romance “Sangue no olho”:

Sangue no olho é sua primeira obra publicada no Brasil. Como ela se relaciona com o restante de sua obra ainda inédita em português?

Todos os meus livros, penso, são diferentes; cada um foi respondendo, ou tentando responder, a uma pergunta que, no momento, era urgente. Comecei trabalhando no território da infância feminina, examinando as maneiras como as meninas são educadas para serem mulheres, o disciplinamento feroz pelo qual passamos: eu estava interessada em mostrar essa zona obscura e indisciplinada da infância. Nisto se encaixam os meus três primeiros livros escritos no Chile, e talvez não seja tão estranho o fato de que eu os escrevi neste país, pois a disciplina também faz parte da ditadura na qual cresci. A saída do Chile há quinze anos introduziu novos cenários (Chile e Estados Unidos como paisagens distintas, mas também como vasos comunicantes. Bem ou mal, o meu país foi um laboratório de experimentos neoliberais dos anos oitenta) e novos temas, o que você mencionou antes, o da doença. Talvez o que todos os meus livros tenham em comum é que no centro há o corpo de uma mulher que resiste a certas normas, que leva as lógicas imperantes a extremos que podem ser prazerosos e redentores, mas também sinistros. (1)

Caso houvesse uma inversão de papéis em Sangue no olho e fosse a protagonista que cuidasse do outro, como seria? As mulheres se veem em posição mais vulnerável quando acometidas por uma doença, ou o gênero não importa?

O gênero importa muito. Historicamente, as mulheres prezam o sacrifício como um valor: a mãe deve se sacrificar por seu filho, o pai contribui; a esposa se sacrifica pelo marido mas não deve esperar o mesmo de volta; a filha se sacrifica pelos pais e, sobretudo, pela mãe porque lhes deve a vida enquanto seus irmãos se apoiam nela… Isso está poderosamente inscrito na cultura e se reforça o tempo todo através de discursos múltiplos sociais. Quando as mães conseguem dizer não aos pedidos de seus filhos sem sentirem culpa ou serem culpadas? Quando, na intimidade de um casal, a mulher logra colocar as suas necessidades acima da dos outros como quase sempre fazem os outros? Não são as filhas que se encarregam de cuidar dos pais idosos mais frequentemente? Não digo que sempre seja assim, o que digo é que custa mais às mulheres deixarem de agir assim porque foram educadas para servir e para sentir que os seus desejos e talentos possuam menos valor. Isso segue sendo assim e é difícil enxergar. Quando tenho alguma dúvida na minha vida pessoal, sempre, como regra, inverto a situação e penso no contrário: o que fariam o meu parceiro, o meu irmão, o meu pai ou o que faria nesta situação se eu fosse um homem? Não é que queira ser um homem, isso nem me passa pela cabeça. Nada mais é do que um exercício que me permite ver até que ponto obedeço ao chamado de uma regra cultural retrógrada e reajo a um desejo. Para não me prolongar, foi isso precisamente o que fiz ao escrever o meu romance, dar uma volta na relação do gênero e ver a situação clássica desde a sua inversão. Acredito que o que surpreende aos leitores é precisamente esta inversão: aí se enxerga as coisas muito melhor, e elas assustam muito mais. (3)

Tu último libro, Sangre en el ojo, fue publicado en distintos países de Europa como Francia, Alemania, Reino Unido, Italia y Holanda. ¿Cuáles crees que son las principales diferencias entre la recepción de tu obra en Europa y en América Latina?

Es difícil saber, yo no ando a la caza de las reseñas de mis libros pero mi impresión es que no hay una distinción clara entre Europa y América Latina, ese trazo continental es demasiado grueso. Hay muchas diferencias culturales e ideológicas y expectativas literarias entre los países de Europa así como entre los países americanos. Y además, en cada uno de esos lugares hay importantes diferencias de género, clase y raza, que se reflejan en la lectura, entonces no lo sé. Solo anecdóticamente te puedo comentar que  mientras que en Chile nadie leyó el contenido político de mi novela, en Italia no dejaron de reparar en los escasos momentos en que se comenta la relación entre cuerpo enfermo y dictadura, y mientras en Brasil algunos lectores celebraron la escena sexual en el avión, nadie más dijo nada, al menos que yo sepa sobre esto. Y en las sucesivas presentaciones de mi libro, hay lugares donde el público percibe el humor negro del libro y otros donde la respuesta es sería y acongojada. (4)

A protagonista disse em uma conversa com sua professora que só há um escritor cego. Imagino que tenha pensado em Borges, mas há na literatura ocidental certa corrente da literatura da cegueira. Você pensou nessa questão quando escrevia o livro?

Era Borges a figura, com efeito, porque a cegueira de Borges é única. Borges fica cego aos 50 anos, no momento em que começa a ser internacionalmente reconhecido, e fotografado. O rosto de Borges, com a vida perdida, com suas mãos de sábio sobre a bengala, é uma imagem icônica, indelével. É o grande cego da nossa literatura contemporânea. Não é que Lucina não saiba de Homero, de Milton, de Joyce. Então, o que ela quer dizer é que o grande, o contemporâneo, o cego terminal que os latino-americanos recordam é Borges. Por isso você adivinha. (2)

Foi influenciada por algum livro específico de um escritor cego (Borges é uma referência clara), ou sobre a cegueira de modo mais amplo?

[…] Eu tinha lido os livros mais canônicos da cegueira latino-americana, como “Sobre heróis e tumbas”, de Ernesto Sabato, e esse fabuloso conto de Clarice Lispector chamado “Amor”, mas meu romance não surge dessas leituras específicas, e sim da literatura da enfermidade, que enfrentei enquanto escrevia minha tese de doutorado. (5)

  • Sobre Lina Meruane:

En tus obras queda en evidencia el papel de la lectura, del ejercicio de la escritura, pero también el de las redes intelectuales y el de los afectos que se forman entre escritores, académicos e investigadores. ¿Se podría decir que el escritor contemporáneo ya no escribe aislado del mundo? ¿Cuál sería el lugar de la escritura y lectura en tu cotidianidad?

Pienso que hay muchas maneras de ser escritor; por resumir un poco y generalizar otro poco, diría que hay tres posiciones. Una es la del quien se plantea el aislamiento, el silencio, el bajo perfil que a veces es una decisión literaria y otras responde a la timidez o a la fobia social. Otra es la de quien piensa la escritura como plataforma mediática para obtener un estatus de celebridad, ahí hay mucha sobrexposición que puede acabar por distorsionar la propia escritura al volverla un medio para lograr un fin de orden publicitario. Ese es el lugar más peligroso y entre los dos extremos yo valoro más el del retraimiento de quien escribe por una necesidad íntima. Lo que me pasa a mí es que aunque necesito mucho silencio y tiempo para escribir, soy un animal social. Me da curiosidad la gente, me atrae hablar con gente y escucharla, y por supuesto me disgusta a ratos pero hay algo que me importa en el diálogo y en la discusión. Por eso formo redes, por eso presento mis libros, me importa la sala de clases donde la lectura, la escritura y la reflexión provocan algo fresco, por eso escribo ensayos que pretenden interpelar y columnas de opinión (aunque muy pocas ahora porque cansa mucho esa búsqueda de nuevos temas e ideas, yo no tengo tantas ideas, me conformo con tener unas poquitas, necesito tiempo para reflexionar y posicionarme en lo que ocurre cotidianamente). Todo eso es el espacio donde ocurre lo político y eso para mí es central en mi obra y en mi vida de los afectos. (4)

Ao discutir Ensaio sobre a cegueira, José Saramago declarou: “Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso”. Ao escrever Sangue no olho, você compartilha desta angústia sentida por Saramago?

São raras as vezes em que penso no leitor enquanto escrevo, eu não saberia dizer quem é o meu leitor… e muito menos como é, o que quer, o que busca. Por melhor ou pior que seja, eu sou a única leitora que posso imaginar e a única que posso agradar além de incomodar. Isso me dá uma enorme liberdade na hora de escrever, uma liberdade para ir até onde deva ir um romance mesmo quando este destino seja extremamente estranho e cruel. Nunca tratei com pena a leitora que eu sou, busco levar o romance até certos limites, fazer ver certas coisas que nem eu sei quais são quando começo a escrever. Por outro lado, sinceramente não acredito que os leitores adultos não saibam o quão cruéis nós, os seres humanos, somos. Não é essa a realidade que poderiam descobrir nem no meu romance ou em algum outro. Tenho a impressão de que não é a crueldade e sim os modos sofisticados em que, às vezes, aparece, os meios utilizados, as perguntas que nos obriga a fazer. Outra diferença que sinto perante esta afirmação de Saramago é que não sofro enquanto escrevo, por mais que a cena seja terrível. Não sofro com os personagens, não sofro com as suas digressões: toda a minha energia se volta para o material da escrita e não na sua profundidade moral. Se a frase não sai, se a cena não tem força, se o personagem não se estrutura, é quando me desespero. Sei que é bem-visto um escritor sofrer ao escrever — é um legado do romantismo, penso às vezes; noutras, penso que sofrer ou dizer que se sofre é uma justificativa necessária ao escritor perante o mundo quando não tem que se levantar de manhã cedo, tomar um ônibus lotado, e passar horas em um escritório ou uma fábrica. Tenho um trabalho em tempo integral, não tão sacrificado quanto o do operário ou do burocrata, é certo, mas talvez porque não preciso destas justificativas, posso dizer que desfruto muito quando tenho a chance de tirar tempo para escrever e encontro sucesso na execução de um texto que alcança até onde deve ir. Isso é o que sinto quando escrevo ficção, o grande prazer da escrita por si só, até quando o que esteja contando seja terrível, sei que se trata de um artifício. Dito isso, reconheço que senti algo bem diferente ao escrever o meu livro sobre a situação palestina, e creio que o sentimento foi assim porque estava falando das vidas reais das pessoas que sofrem e que são violentadas sistematicamente por outras: aí, sim, eu me vi muito comovida e indignada. (3)


Por fim, textos da escritora e afins:

  • Um excerto de Sangue no olho (Cosac Naify, 2015)
AMANHÃ

(Cá estou. Lá vou eu. Olhando outra vez pela janela do táxi, com o olhar fixo, tentando, da estrada, captar um pouco do horizonte, a silhueta agora oca de duas torres pulverizadas, a linha do céu mutilada junto ao brilho tênue do rio salpicado de estrelas, o néon do History Channel deslumbrante sobre a água. Vejo tudo sem ver, vejo tudo através da lembrança do já visto ou através dos teus olhos, Ignacio. Os faróis do táxi rasgavam uma leve neblina noturna de papel e metais chamuscados que se negava a se esfumar, grudava no vidro e o embaçava. O turco ultrapassava alguns carros aos trancos, mas também deixava outros nos ultrapassarem, velozes, buzinando. Vocês cochilavam, talvez tenham até caído no sono, embalados pelas inclementes aceleradas e freadas. Acomodei a testa na janela e fechei os olhos até ser sacudida, Ignacio, por tua voz, tão nova em minha vida que às vezes eu demorava a reconhecer como tua, tua voz que, aliás, mudava de tom quando você falava em outra língua. Era uma voz para dar instruções em inglês ao motorista do táxi: que saísse pela próxima exit, que virasse para o oeste, que seguisse em direção à Washington Bridge, ainda acesa no horizonte. Não tínhamos planejado cruzar aquela ponte enferrujada, não estávamos indo para o subúrbio, do outro lado, onde eu morei um dia e para onde nunca pretendi voltar. Estava voltada para o presente, eu, isso era tudo o que eu tinha enquanto deixávamos Julián na esquina do prédio dele e prosseguíamos para o teu, que agora era o nosso. E quando ficamos sozinhos você segurou meu rosto para que eu me virasse e te olhasse. Para que você pudesse me olhar. Teus olhos não percebiam nada de extraordinário, não viam o que havia atrás de minhas pupilas. Foi muito? Muito mais do que antes, falei, sombria, mas talvez amanhã. Amanhã você vai estar melhor. Mas amanhã já era hoje: só faltava clarear e as luzes mortiças serem eclipsadas pelo sol. Coroado com um turbante o turco parou de repente e escorregamos para frente. Não se mova, você disse, e depois senti a porta batendo, e você deve ter dado toda a volta para abri-la para mim, me dar a mão, me avisar que abaixasse a cabeça. Vendo-nos de longe, qualquer um diria que estávamos saindo de outro século, não de um carro. Descemos da máquina do tempo de braços dados e assim subimos a escadaria até o elevador e os cinco andares. Assim avançamos pelo corredor até o tilintar das chaves na fechadura. O ar parado do apartamento nos recebeu. O calor veio de todos os cantos, do chão sem tapetes, das paredes completamente nuas, das infinitas caixas que pareciam cheias de carvão em brasa em vez de livros. Havia dias que empacotávamos as coisas para uma mudança iminente. Por um corredor segui direto para o quarto, você entrou atrás: cuidado, deixei um copo d’água aqui pra você. E nos jogamos na cama e nos abraçamos apesar da umidade e, ungidos de suor, adormecemos. E na manhã seguinte você levantou as persianas e sentou na minha frente esperando eu acordar, não sei se do meu sonho ou da minha vida. Mas eu estava insone havia horas, sem coragem de abrir os olhos. Lina? Levantei uma pálpebra, depois a outra, e para meu espanto havia luz, um pouco de luz, luz suficiente: a sombra sanguinolenta não tinha desaparecido do olho direito, mas a do esquerdo se precipitara para o fundo. Eu só estava meio cega. E por isso aceitei teu café e o levei à boca sem hesitar, por isso até sorri, porque, apesar de tudo. E você estava ali, como outro caolho, sem entender o que tinha acontecido. Não podia calcular a gravidade. Não se animava a fazer todas as perguntas. Guardava-as para si, amarrotadas, como agora, nos bolsos.)


  • Um depoimento sobre o ensaio “Contra os filhos” (2014):
Lina Meruane




  • O conto “Amor”, de Clarice Lispector.

À leitura!

Com Manu Chao, Calypso Rose, Shakira e Rihanna, humanidade e integração entram em perspectiva

Manu Chao é francês, filho de espanhóis que deixaram a própria terra para escapar dos tentáculos de um regime ditatorial. É compositor, um artista sensível a movimentos sociais e que acredita que as revoluções de que necessitamos surgem pequenas, desencadeando-se a partir de gestos que visam, em primeiro lugar, modificar seu próprio executor ou seu entorno. Gestos irmanados no cotidiano seriam, portanto, motores das transformações que sonhamos.

Assim, foi pensando em estender e em fortalecer a corrente formada por aqueles que se preocupam com os impactos das migrações pelo mundo que Chao lançou, ao longo de sua carreira, diferentes versões de sua música “Clandestino”, apresentada originalmente ao público 1998. Em sua versão mais recente, ela chega acrescida de versos em inglês, interpretados por Calypso Rose, reconhecida cantora e compositora de Trinidade e Tobago.

 Clandestino
 
Solo, voy con mi pena
Sola, va mi condena
Correr es mi destino
Por no llevar papel
 
Pa' una ciudad del norte
Yo me fui a trabajar
(Como una raya en el mar)
Mi vida la dejé
Entre Ceuta y Gibraltar
(Como una raya en el mar)
 
Solo, voy con mi pena
Sola, va mi condena
(Como una raya en el mar)
Correr es mi destino
Para burlar la ley
(Como una raya en el mar)
 
I cannot go forward
I cannot return
And the land in front don't want me
Look the land behind me burn
(Como una raya en el mar)
 
I am stranded on the sea
With an unknown destiny
(Como una raya en el mar)
No home to return to
Nobody waiting for me
(Como una raya en el mar)
 
Solo, voy con mi pena
Sola, va mi condena
Correr es mi destino
Para burlar la ley
(Como una raya en el mar)
 
Perdido en el corazón
De la grande Babylon
(Como una raya en el mar)
Me dicen el clandestino
Por no llevar papel
Lai-larai-la-lai-lai
Lai-larai-lai-lai
Lai-larai-la-lai-lai
Lai-larai-lai-lei
 
Prr
 
I cannot go forward
I cannot return
And the land in front don't want me
Look the land behind me burn
 
We are stranded on the sea
With my whole family
(Como una raya en el mar)
No home to return to
Nobody waiting for me
(Como una raya en el mar)
 
Solo, voy con mi pena
Sola, va mi condena
Correr es mi destino
Yo soy el quiebra ley
(Como una raya en el mar)
 
Oh my gosh (Lai-larai-la-lai-lai)
I am in pain (Lai-larai-lai-lai)
Prr (Lai-larai-la-lai-lai)
(Larai-larai-lai-lai)

A letra da música está disponível aqui e a música pode ser baixada gratuitamente do site de Manu Chao.

Esta música de Chao, que não pode ser mais atual, teve suas camadas de sentido sendo adensadas ao longo dos anos, inclusive pelo próprio compositor. Em 2011, Chao gravou um novo clip para ela depois de tomar conhecimento de uma prisão para imigrantes situada no Arizona, nos Estados Unidos. Restou ao compositor gravar seu vídeo em frente ao presídio, uma vez que o xerife que controlava o território onde ela estava situada não autorizou a filmagem das instalações. A despeito disso, a inserção no clip de um depoimento de um dos detidos no local contribuiu para nos dar a dimensão do sofrimento a que outros como ele, ali detidos, estavam sendo submetidos ao serem tratados como “terroristas”, e não como pessoas que migram buscando melhores condições de trabalho, para que possam sustentar suas famílias.

Em 2019, Lila Downs, uma cantora mexicana que assim como Chao, canta em várias línguas, juntou-se ao time daqueles que vêm contribuindo para a renovação de “Clandestino”. Sua versão traz visibilidade para as crianças que migram, algumas das quais sendo abusivamente presas em centros de detenção. A prática, comum nos Estados Unidos, nos faz refletir sobre o papel brutal de governos ditos democráticos, governos que hierarquizam pessoas e que, ao fazê-lo, privam tantos da possibilidade de se constituírem cidadãos em territórios que não aqueles de seu nascimento. Downs relaciona os milhares de crianças e de mulheres migrantes a nosso futuro, instando-nos a protegê-las, na medida em que são protagonistas de um movimento – o da imigração – que molda a história da humanidade desde sua origem.

Na sequência, Calypso Rose, com o engajamento que lhe é típico, direciona a visada de “Clandestino” para aqueles que singram mares de forma precária, deixando terras natais hostis para se depararem, não poucas vezes – se concluem a travessia – com a agressividade de quem ainda não aprendeu a lidar com a diversidade e a reconhecer o potencial alheio, moeda para o enriquecimento mútuo quando há encontro, ao invés de incompatibilidade de perspectivas e o sufocamento da alteridade.

“Clandestino” – Manu Chao & Calypso Rose (2019)

Ao recuperarmos a música de Chao, com as contribuições de Calypso e de Downs, torna-se inevitável trazer à mente tragédias que envolveram crianças. Há pouco, uma menina brasileira de 2 anos desapareceu em um rio localizado entre o México e o Estados Unidos enquanto sua mãe procurava cruzá-lo, mesmo rio em que, dias depois, veio a falecer uma menina salvadorenha, tão pequena quanto, acompanhada de seu pai, que procurava chegar aos Estados Unidos depois de semanas vivendo em abrigos no México. Esses eventos surgem como atualizações da morte do sírio Alyan Kurdi, de 3 anos, encontrado em uma praia da Turquia em 2015 depois que o barco em que sua família estava naufragou. Essas ocorrências escancaram o quanto há por ser feito para que as vidas de migrantes parem de ser tratadas como se fossem descartáveis.

Para a cantora e compositora colombiana Shakira, a imagem de Alyan Kurdi não pode ser ignorada ou esquecida, sendo de todos a responsabilidade de gerir uma crise humanitária que tem feito crianças “pagarem o preço da guerra”. A artista, que descende de libaneses e que mora na Espanha atualmente, é embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Para além da carreira no campo da música, ela se dedica à filantropia, dando atenção especial a projetos que procuram garantir o desenvolvimento integral de crianças, especialmente em seus primeiros anos de vida. A este compromisso se dedica a Fundación Pies Descalzos, ONG fundada pela cantora no final da década de 1990 e que oferece educação para crianças e jovens em Barranquilla, Cartagena e Quibdó, na Colômbia.

A preocupação com as condições de vida de migrantes não é a única característica que aproxima Shakira de Manu Chao. A colombiana também conta em seu repertório com uma música chamada Clandestino, embora a sua enfoque questões sentimentais. Além disso, a compositora, que é poliglota, também estabelece parcerias com artistas de outras nacionalidades, assim diversificando suas produções.

Se em Clandestino, a cantora fez um dueto com Maluma, que é colombiano, devemos lembrar que ela já uniu sua voz à de Rihanna, cantora nascida em Barbados. As duas cantaram e gravaram juntas o clip da música “Can’t remember to forget you”, que já alcançou quase 1 bilhão de visualizações no Youtube desde 2014.

Não nos parece equivocado pensar que o bom entrosamento das duas nesse contexto resulta, em parte, de afinidades que têm. Rihanna também soma ao grupo dos atentos a políticas pouco inclusivas que repercutem negativamente sobre a vida de imigrantes. Ela, que não hesita em se manifestar publicamente sobre o assunto, também responde por uma fundação comprometida com o respeito aos direitos humanos. A Clara Lionel Foundation mantém iniciativas no campo educacional em países como Barbados, Senegal e Malawi, além de oferecer bolsas de estudos para jovens aprovados em seleções de universidades dos Estados Unidos.

Rihanna também tem características em comum com Calypso Rose, que interpreta com Manu Chao uma das mais recentes versões de “Clandestino”. Ambas são caribenhas e vivem nos Estados Unidos. Agora Rose trabalha a partir da América do Norte pela divulgação internacional do calypso ao mesmo tempo em que sente a vida na diáspora repercutir sobre o seu trabalho.

Em 2016, por exemplo, Rose lançou um álbum chamado “Far from home” (“Longe de casa”), que conta com a participação de Chao e que recebeu o prêmio Victoire de la musique, o Grammy francês, em 2017. Quando questionada a respeito, respondeu: “Diante de ‘Far from home’, estou muito mais animada com o que alcancei. É um álbum que quase ganhou um disco de platina. – Graças a ele, tive a oportunidade de cantar para pessoas de muitos lugares. Isto é o que pretendi expressar com seu título: estou longe de casa, voando, de um show para outro, Espanha, Alemanha, Nova Iorque, entretanto, estou em conexão com os outros, musicalmente, e isso é importante para uma pessoa do Caribe. Este é um álbum caribenho importante em termos de capacidade de alcance de uma grande audiência.”

Na mesma ocasião, quando instada a escolher uma música de seu repertório que trata de sua terra, de seu lar, a sua favorita, Rose mencionou “O, Tobago”, que exalta a beleza da ilha em que nasceu e onde viveu até os nove anos, época em que se mudou para Trinidad. Se é certo o seu carinho por Tobago, inigualável é o papel que teve Trinidad em sua vida: foi aí que ela conheceu as melodias do calypso e aprendeu a dançá-lo, dando, assim, os primeiros passos para a instauração de um reinado em um campo até então dominado pelos homens.

Que Calypso Rose, Manu Chao, Rihanna e Shakira possam continuar sendo referências na luta pela emancipação de pessoas em situações de vulnerabilidade!

De nossa parte, torcemos para que este texto torne visível para os que acompanham o Leituras dos Girassóis que quanto mais oportunidade migrantes tiverem para exercer suas potencialidades em territórios diferentes daqueles em que nasceram, mais intensas serão nossas trocas culturais e, portanto, mais multifacetadas e enriquecidas se tornarão nossas sociedades.

Que possamos então nos comunicar bem e nos abrir mais uns com os outros para que as próximas lágrimas que vierem a surgir no horizonte sejam indício de entendimento mútuo e de satisfação com as interações que estivermos engendrando!


Yo no creo en una gran revolución que va a cambiar las cosas, me parece muy utópico. Creo en miles y miles de revoluciones de barrio, juntándose unas a otras se hará la diferencia […] porque puede llegar a cambiar las cosas desde uno mismo, desde su família. – Manu Chao.

Emanuel Melo entre viver, escrever e pertencer

Emanuel Melo é um escritor nascido nos Açores, região insular de Portugal onde passou sua infância. Na sequência, emigrou para o Canadá, estabelecendo-se em Toronto. Daí o título de seu blogue – The Torontonian Azorean writer” que, à primeira vista, indica como o escritor percebe suas raízes geoculturais.

Nesta quinzena, aproveitaremos a oportunidade para fazer referência a quatro textos seus: “Being Through Words” (2018) e “Exile” (2016), publicados em seu blogue, “The New Wave of Luso-Canadians” (2017), publicado na imprensa, e “The Weekly Visit” (2014), conto publicado em uma revista literária.

Foto tirada por Fernanda Sousa (2016)

Em “Being Through Words”, Emanuel trata da disputa linguística que o habita e de seu desejo de fazer reviver em si mesmo a língua portuguesa, com a propriedade com que maneja a língua inglesa, íntima depois de décadas de convívio diário. Ele tece considerações sobre como elabora seus textos, assinalando o entremear de fios da língua portuguesa em textos construídos em língua inglesa como uma de suas características. E de modo sucinto, alude ao significado da memória para o imigrante, ao papel da tradução, além de procurar atribuir um sentido à ideia de pertencer.

Em “Exile”, Emanuel se revela investido em uma jornada por meio da qual pretende encontrar seu lar por meio da linguagem. E se confessa um escritor leitor que elege referenciais dentre seus pares, como Jhumpa Lahiri, de quem admira a “habilidade de articular sentimentos sobre linguagem e pertencimento”. São referenciais por meio dos quais valida, em algum grau, sua própria trajetória, aquilatando seu projeto literário e refletindo sobre suas experiências, a que dizem respeito a questão identitária, a questão linguística e, no plano artístico, o acabamento estético. Nesses textos, o escritor também faz referência às escritoras Avelina da Silveira e May Sarton.

Já no texto “The New Wave of Luso-Canadians”, Emanuel vai à sociedade que lhe circunda para retomar questões que lhe são caras. Trata-se de pensar o português em interação com a sociedade canadense. Para tanto, alude a imigrantes portugueses de duas épocas e a um Canadá que alterou sensivelmente, ao longo dos anos, os critérios por meio dos quais seleciona os estrangeiros que poderão habitá-lo. Nesse texto, indiretamente, o escritor dá visibilidade às maneiras por meio das quais podemos dar forma a um conceito: aqui devemos pensar no processo de corporificação de uma identidade nacional. Em síntese, somos convidados a considerar que “assim ou assado” pode-se ser português, algo que felizmente destoa das interpretações que buscam uma essência uniforme para aquilo que se quer nacional ou de uma mesma etnia, sempre se excluindo, quando não se esmagando, a diversidade e o que ela tem de potência nesses processos rotuladores.

Finalmente, o conto “The Weekly Visit”, narrado em terceira pessoa, nos põe em contato com personagens de uma mesma família: um homem e sua mãe viúva, ambos portugueses e há anos residentes no Canadá. A falta de sintonia ou a indisponibilidade emocional do filho para com a mãe bem como a postura vitimista dela ocupam o primeiro plano da narrativa. E motivos importantes são suscitados pelo texto, como a velhice, o (des)afeto e a solidariedade. Alguns deles são primordiais para migrantes, como a manutenção da identidade originária por meio dos hábitos alimentares e o convívio com línguas diferentes e os desafios advindos.

Aqueles que se sentem motivados a pensar sobre implicações culturais (e até políticas) do migrar e sobre o sentido de pertencer – a países, culturas, línguas e pessoas – terão suas reflexões nutridas pelas ideias disseminadas por esses textos de Emanuel. E enquanto não contamos com traduções suas, em particular os lusófonos que ousarem transpor uma língua outra perscrutarão um mundo com elementos que ressoarão em suas vidas, de forma mais ou menos explícita.

Clarice Lispector e a busca por pertencer

Clarice Lispector é uma escritora que reivindicou o Brasil como sua terra natal apesar de ter nascido na Ucrânia. Fato é que a escritora chegou ao país bem novinha, com a família, que fugia de uma guerra civil e da perseguição a judeus que sucederam à Revolução Bolchevique de 1917.

A família Lispector chegou à cidade alagoana de Maceió, onde viveu por alguns anos, em contato com parentes, até se mudar para Pernambuco. Mãe, pai e filhas se estabeleceram em Recife, onde permaneceram por um período maior, convivendo, então, com familiares e também com a comunidade judaica local. Nesse período, a escritora cuidou de sistematizar conhecimentos sobre línguas como o português, o iídiche, o hebraico, o inglês e o francês. Isto depois de ter seu nome alterado de Haia para Clarice, por decisão de seu pai.

Com o Recife no coração, a futura escritora se mudou com a família para o Rio de Janeiro, onde cursou Direito e iniciou uma carreira no jornalismo. Mas a então capital brasileira não abrigaria, ainda, seu último pouso. Porque veio a se casar com um diplomata, Clarice se viu envolvida com vários outros territórios, de forma mais ou menos desejada. Acabou vivendo em países como a Itália, a Inglaterra, a Suíça e os Estados Unidos, até voltar a viver no Brasil, especificamente no Rio de Janeiro, onde passou seus últimos dias.

Os interessados na biografia da escritora, tirarão proveito desta linha do tempo e desta fotobiografia, em que nos amparamos para traçar o percurso da escritora. Neste momento, porém, gostaríamos de chamar a atenção para dois textos de Clarice que tratam da questão do pertencimento. O primeiro é uma crônica que ela publicou em 1968 no Jornal do Brasil; o segundo, ainda mais pessoal, consiste em uma carta que a escritora escreveu para o presidente do Brasil enquanto tramitava seu processo de naturalização. Os textos falam por si mesmos. Acompanhe-os a seguir:

Pertencer

Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço a criança sente o ambiente, a criança quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já começou.

Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça.

Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.

Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim.

Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso. Quem sabe se comecei a escrever tão cedo na vida porque, escrevendo, pelo menos eu pertencia um pouco a mim mesma. O que é um fac-símile triste.

Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova de “solidão de não pertencer” começou a me invadir como heras num muro.

Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações? Porque não é isso o que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertencesse. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos – e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.

Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte.

Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha própria força – eu quero pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.

Embora eu tenha uma alegria: pertenço, por exemplo, a meu país, e como milhões de outras pessoas sou a ele tão pertencente a ponto de ser brasileira. E eu que, muito sinceramente, jamais desejei ou desejaria a popularidade – sou individualista demais para que pudesse suportar a invasão de que uma pessoa popular é vítima -, eu, que não quero a popularidade, sinto-me no entanto feliz de pertencer à literatura brasileira. Não, não é por orgulho, nem por ambição. Sou feliz de pertencer à literatura brasileira por motivos que nada têm a ver com literatura, pois nem ao menos sou uma literata ou uma intelectual. Feliz apenas por “fazer parte”.

Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e no entanto premente sensação de precisar pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas: nascida.

No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdoo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser conhecido.

A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho.

Esta crônica faz parte do livro A descoberta do mundo, publicado pela editora Rocco.


Rio de Janeiro, 3 de junho de 1942

Senhor presidente Getúlio Vargas,

Quem lhe escreve é uma jornalista, ex-redatora da Agência Na­cional (Departamento de Imprensa e Propaganda), atualmente n’A Noite, acadêmica da Faculdade Nacional de Direito e, casual­mente, russa também.

Uma russa de 21 anos de idade e que está no Brasil há 21 anos menos alguns meses. Que não conhece uma só palavra de russo mas que pensa, fala, escreve e age em português, fazendo disso sua profissão e nisso pousando todos os projetos do seu futuro, próximo ou longínquo. Que não tem pai nem mãe – o primeiro, assim como as irmãs da signatária, brasileiro naturalizado – e que por isso não se sente de modo algum presa ao país de onde veio, nem sequer por ouvir relatos sobre ele. Que deseja casar-se com brasileiro e ter filhos brasileiros. Que, se fosse obrigada a voltar à Rússia, lá se sentiria irremediavelmente estrangeira, sem amigos, sem profissão, sem esperanças.

Senhor presidente. Não pretendo afirmar que tenho prestado grandes serviços à Nação – requisito que poderia alegar para ter di­reito de pedir a vossa excelência a dispensa de um ano de prazo, necessário a minha naturalização. Sou jovem e, salvo em ato de heroísmo, não poderia ter servido ao Brasil senão fragilmente. Demonstrei minha ligação com esta terra e meu desejo de servi-la, cooperan­do com o DIP, por meio de reportagens e artigos, distribuídos aos jornais do Rio e dos Estados, na divulgação e na propaganda do governo de vossa excelência. E, de um modo geral, trabalhando na impren­sa diária, o grande elemento de aproximação entre governo e povo.

Como jornalista, tomei parte em comemorações das grandes datas nacionais, participei da inauguração de inúmeras obras ini­ciadas por vossa excelência, e estive mesmo ao lado de vossa excelência mais de uma vez, sendo que a última em lº de maio de 1941, Dia do Trabalho.

Se trago a vossa excelência o resumo dos meus trabalhos jornalísticos não é para pedir-lhe, como recompensa, o direito de ser brasileira. Prestei esses serviços espontânea e naturalmente, e nem poderia deixar de executá-los. Se neles falo é para atestar que já sou bra­sileira.

Posso apresentar provas materiais de tudo o que afirmo. In­felizmente, o que não posso provar materialmente – e que, no entanto, é o que mais importa – é que tudo que fiz tinha como núcleo minha real união com o país e que não possuo, nem elege­ria, outra pátria senão o Brasil.

Senhor presidente. Tomo a liberdade de solicitar a vossa excelência a dispensa do prazo de um ano, que se deve seguir ao processo que atualmente transita pelo Ministério da Justiça, com todos os re­quisitos satisfeitos. Poderei trabalhar, formar-me, fazer os indis­pensáveis projetos para o futuro, com segurança e estabilidade. A assinatura de vossa excelência tornará de direito uma situação de fato. Creia-me, senhor presidente, ela alargará minha vida. E um dia saberei provar que não a usei inutilmente.

Clarice Lispector

Carta disponível aqui (acesso em 15/06/2019) e no livro Correspondências, publicado pela editora Rocco.


“Se eu tivesse que dar um título à minha vida seria: à procura da própria coisa.”

Quer mais de Clarice? Veja:


Está de passagem? Lembre-se que o Leituras dos girassóis já tem a programação de 2019 definida. Acompanhe e divulgue!

E aqui veja outras formas de oferecer a sua contribuição para este projeto.

Taiye Selasi e a noção de identidade baseada em experiências locais

Acompanhe o discurso feito por Taiye Selasi em uma edição do TED Global em 2014:

Taiye Selasi | TEDGlobal 2014

O vídeo pode ser assistido com legendas em português. No ícone “Subtitles” (“Legendas”), escolha a opção “More languages” (“Mais línguas”) e, finalmente, selecione “Portuguese, Brazilian” (“Português brasileiro).

A seguir, você encontra a transcrição em português do discurso feito pela escritora. E se quiser ter acesso a sua versão original, em inglês, clique aqui.

Não me pergunte de onde eu venho, pergunte de que local eu sou, por Taiye Selasi

Ano passado, comecei minha primeira turnê do livro. Em 13 meses, visitei 14 países e dei algumas centenas de palestras. Cada palestra em cada país começava com uma introdução e cada introdução começava, infelizmente, com uma mentira: “Taiye Selasi vem de Gana e da Nigéria” ou “Taiye Selasi vem da Inglaterra e dos EUA” Sempre que ouvia essa sentença de abertura, não importava com qual país a concluíssem, Inglaterra, EUA, Gana, Nigéria, eu pensava: “mas isso não é verdade.” Sim, nasci na Inglaterra e cresci nos EUA. Minha mãe, nascida na Inglaterra, cresceu na Nigéria e atualmente mora em Gana. Meu pai nasceu em Gold Coast, uma colônia britânica, cresceu em Gana e morou por mais de 30 anos no reino da Arábia Saudita. Por essa razão, meus apresentadores também me chamavam de “multinacional”. “Mas a Nike é Multinacional”, eu pensava, “Sou humana.” 

Então um dia, no meio da turnê, fui para Louisiana, um museu na Dinamarca, onde dividi o palco com o escritor Colum Mccann. Estávamos discutindo o papel da localidade na escrita, quando de repente me toquei. Não sou multinacional. Não sou nacional de modo algum. Como posso ter vindo de uma nação? Como pode um ser humano vir de um conceito? É uma pergunta que vem me incomodando por duas décadas. De jornais, livros, conversas, aprendi a falar sobre países como se eles fossem eternos, singulares, coisas que acontecem naturalmente, mas pensei: “dizer que venho de um país sugere que o país é absoluto, um ponto fixo no lugar e no tempo, uma coisa constante, mas será que é?” Durante a minha vida, países desapareceram, Checoslováquia; apareceram, Timor Leste; fracassaram, Somália. Meus pais vêm de países que não existiam quando nasceram. Para mim, um país, essa coisa que pode nascer, morrer, expandir, contrair, dificilmente parece a base para entender um ser humano. 

Então descobrir o estado soberano me fez ficar aliviada. O que chamamos de países são, na verdade, muitas expressões de estados soberanos, uma ideia que entrou na moda há apenas 400 anos. Quando descobri isso, começando meu mestrado em relações internacionais, tive uma espécie de surto de alívio. Era como eu suspeitava. A história era real, culturas eram reais, mas países foram inventados. Pelos próximos 10 anos, procurei me re- ou indefinir, meu mundo, meu trabalho, minha experiência, além da lógica do estado. 

Em 2005, escrevi um ensaio, “What is an Afropolitan,” esboçando uma identidade que privilegiava a cultura ao invés do país. Foi emocionante quantas pessoas entendiam minha experiência e instrutivo quantos outros não aceitaram meu senso de individualidade. “Como pode a Selasi afirmar ter vindo de Gana”, um desses críticos perguntou, “quando ela nunca soube das indignidades de viajar com um passaporte ganense?” 

Bem, sendo honesta, eu sabia exatamente o que ela quis dizer. Tenho uma amiga chamada Laila que nasceu e foi criada em Gana. Seus pais são a terceira geração de ganenses descendentes de libaneses. Laila, que fala twi fluentemente, conhece Acra como a palma de sua mão, mas quando nos conhecemos anos atrás, pensei: “ela não é de Gana”. Na minha cabeça, ela vinha do Líbano, apesar do fato evidente de que toda sua experiência formativa se deu no subúrbio de Acra. Eu, como meus críticos, imaginava uma Gana onde todos ganenses tinham a pele morena ou nenhum tinha passaporte do Reino Unido. Tinha caído na armadilha limitadora da linguagem de se vir dos países, que determina, o privilégio de uma ficção, o país singular, acima da realidade: a experiência humana. Conversando com Colum McCann naquele dia, a ficha finalmente caiu. “Toda experiência é local”, ele disse. “Toda identidade é experiência”, pensei. “Não sou nacional”, proclamei no palco, “sou local. Sou multi-local.” 

Vejam, “Taiye Selasi vem dos EUA” não é a verdade. Não tenho relação alguma com os Estados Unidos, com nenhum dos 50. Minha relação é com Brookline, a cidade onde cresci; com Nova Iorque, onde comecei o trabalho; com Lawrenceville, onde passo o dia de ação de graças. O que faz a América ser meu lar não é meu passaporte ou meu sotaque, mas essas experiências particulares e os lugares onde elas ocorrem. Apesar do meu orgulho da Cultura Ewe, da Seleção Ganesa de Futebol e do meu amor pela comida ganense, nunca tive uma relação com a República de Gana, claramente. Minha relação é com Acra, onde minha mãe mora, aonde vou todo ano, com o pequeno jardim em Dzorwulu onde meu pai e eu conversamos por horas. Esses são os lugares que moldam minha experiência. Minha experiência é de onde vim. 

Mas e se perguntássemos, ao invés de “de onde você vem?” “Onde você é local?” Isso nos diria muito mais sobre quem somos e como somos similares. Me diga que você vem da França e o que vejo? Uma série de clichês. A pequena e perigosa história da Adichie, o mito da nação da França? Me diga que você é local de Fez e Paris, ainda melhor, de Goutte d’Or, e eu vejo uma série de experiências. Nossa experiência é de onde viemos. 

Então, onde você é um local? Proponho um teste de três etapas. O chamo dos três R’s: rituais, relacionamentos e restrições. 

Primeiro, pense nos seus rituais diários, quaisquer que sejam: fazer o café, dirigir até o trabalho, fazer a colheita, rezar. Que tipo de rituais são esses? Onde eles ocorrem? Em qual cidade ou cidades no mundo os comerciantes te conhecem? Quando criança, tinha rituais suburbanos bem padrões em Boston, com ajustes feitos para os rituais que minha mãe havia trazido de Londres e Lagos. Tirávamos os sapatos na casa, éramos impreterivelmente educados com os mais velhos, comíamos comida apimentada, preparada lentamente. Na nevosa América do Norte, nossos rituais eram do sul. A primeira vez que fui para Delhi, ou para o sul da Itália, fiquei chocada com quão em casa me senti. Os rituais eram familiares. Primeiro R: rituais. 

Agora, pensem em seus relacionamentos, nas pessoas que moldam seus dias. Com quem você conversa pelo menos uma vez por semana, seja cara a cara ou pelo FaceTime? Seja razoável na sua avaliação; não estou falando dos seus amigos do Facebook. Falo das pessoas que moldam suas experiências emocionais diárias. Minha mãe em Acra, minha irmã gêmea em Boston, meus melhores amigos em Nova Iorque: esses relacionamentos são meu lar. Segundo R: relacionamentos. 

Somos locais onde temos rituais e relacionamentos, mas como experienciamos nossa localidade depende, em parte, das nossas restrições. E quando falo em restrições, digo, onde você pode viver? Qual passaporte você tem? Você está limitado por, digamos, racismo, de se sentir totalmente em casa onde vive? Por guerra civil, governos disfuncionais, inflação, de morar na localidade onde você tinha seus rituais quando criança? Esse é o R menos sexy, menos poético que rituais e relacionamentos, mas a questão nos leva de “Onde você está agora?” para “Por que não está lá e por quê?” Rituais, relacionamentos, restrições. 

Peguem um pedaço de papel e ponham essas três palavras em cima de três colunas, depois tentem preencher essas colunas o mais honestamente possível. Um novo quadro sobre sua vida em um contexto local, sobre sua identidade como um conjunto de experiências pode surgir. 

Então vamos tentar. Tenho um amigo chamado Olu. Ele tem 35 anos. Seus pais, nascidos na Nigéria, vieram para a Alemanha como bolsistas. Olu nasceu em Nurembergue e morou lá até os 10 anos. Quando sua família se mudou para Lagos, ele estudou em Londres, e veio para Berlim. Ele adora ir à Nigéria. O clima, a comida, os amigos… Mas ele odeia a corrupção política lá. De onde vem o Olu? 

Tenho outro amigo chamado Udo. Ele também tem 35 anos. Udo nasceu em Córdoba, noroeste da Argentina, para onde seus avós migraram da Alemanha, onde hoje fica a Polônia, depois da guerra. Udo estudou em Buenos Aires e nove anos atrás veio para Berlim. Ele adora ir para Argentina. O clima, a comida, os amigos… Mas odeia a corrupção econômica lá. De onde vem o Udo? Com seu cabelo loiro e seus olhos azuis, Udo pode se passar por um alemão, mas tem um passaporte Argentino, então, precisa de visto para morar em Berlim. O Udo vir da Argentina tem muito a ver com história. Ele ser um local de Buenos Aires e Berlim, tem a ver com a vida. 

Olu, que parece nigeriano, precisa de visto para visitar a Nigéria. Ele fala Yoruba com sotaque inglês e inglês com sotaque alemão. Declarar que ele “não é nigeriano de verdade”, no entanto, nega sua experiência em Lagos, os rituais que praticou crescendo, seus relacionamentos com a família e os amigos. 

Enquanto isso, apesar de Lagos ser, sem dúvidas, um de seus lares, Olu sempre se sente restrito lá, principalmente porque ele é gay. 

Ambos, ele e Udo, estão restritos pelas condições políticas do país de seus pais, tem restrições para viver onde a maioria de seus mais significativos rituais e relacionamentos ocorrem. Dizer que Olu vem da Nigéria e Udo vem da Argentina os desvia de sua experiência em comum. Seus rituais, seus relacionamentos e suas restrições são as mesmas. 

Claro, quando perguntamos: “de onde você vem?” estamos usando uma espécie de abreviação. É mais rápido dizer “Nigéria” do que “Lagos e Berlim” e assim como com o Google Maps, podemos sempre dar um zoom, do país, para a cidade, para o bairro. Mas esse não é totalmente o ponto. A diferença de “De onde você vem?” para “Onde você é local?” não é a especificidade da resposta, é a intenção da pergunta. Substituir a língua da nacionalidade pela língua da localidade, nos leva a posicionar nosso foco para onde a verdadeira vida acontece. Até a mais gloriosa expressão de nacionalismo, a copa do mundo, nos mostra times compostos por jogadores multi-locais. Como unidade de medida para uma experiência humana, o país não funciona muito bem. Por isso o Ulu diz: “sou alemão, mas meus pais vêm da Nigéria.” O “mas” nessa frase faz jus à inflexibilidade das unidades, uma entidade fixa e ficcional batendo na outra. “Sou local de Lagos e Berlim,” sugere experiências sobrepostas, camadas que se fundem, que não podem ser negadas ou removidas. Podem tirar meu passaporte, mas não podem tirar minhas experiências. Eu as levo dentro de mim. De onde eu sou fica para onde quer que eu vá. 

Para ser clara, não sugiro que acabemos com os países. Há muito a ser dito pela história nacional, mais pelos estados soberanos. A cultura existe em comunidade e a comunidade existe em contextos. Geografia, tradição, memória coletiva: essas coisas são importantes. O que estou questionando é a prioridade. Todas essas introduções na turnê começaram com uma referência à nação, como se sabendo de qual país eu venho diria algo ao público sobre quem eu era. O que estamos procurando, no entanto, quando perguntamos de onde alguém vem? E o que estamos realmente enxergando quando ouvimos a resposta? 

Aqui vai uma possibilidade: basicamente, países representam poder. “De onde você vem?” México. Polônia. Bangladesh. Menos poder. EUA. Alemanha. Japão. Mais poder. China. Rússia. Ambíguo. 

(Risos) 

É possível que sem perceber, estejamos jogando um jogo de poder, especialmente no contexto de países multiétnicos. Como qualquer recém imigrante sabe, a pergunta “De onde você vem?” ou “De onde você realmente vem?” é muitas vezes, um código para: “Por que você está aqui?” 

Então temos os artigos acadêmicos de William Deresiewicz sobre a elite das escolas americanas. “Estudantes acham que seu meio é diverso se alguém vem do Missouri e outro do Paquistão, não importando que todos os pais sejam médicos ou banqueiros.” 

Estou com ele. Chamar um estudante de americano e o outro de paquistanês e triunfantemente reivindicar diversidade do corpo estudantil, ignora o fato de que esses estudantes são locais do mesmo meio. O mesmo é válido do outro lado da visão econômica. Um jardineiro mexicano em Los Angeles e uma diarista nepalesa em Delhi têm mais em comum em termos de rituais e restrições do que uma nacionalidade implica. 

Talvez meu maior problema em vir de países seja o mito de voltar a eles. Sou frequentemente perguntada se planejo “voltar” para Gana. Vou à Acra todo ano, mas não posso “voltar” para Gana. Não porque não nasci lá. Meu pai também não pode voltar. O país em que ele nasceu, esse país não existe mais. Nunca poderemos voltar a um lugar e encontrá-lo exatamente onde o deixamos. Alguma coisa, em algum lugar, sempre terá mudado, na maioria das vezes, nós mesmos. Pessoas. 

Enfim, o que estamos falando é sobre a vivência humana, essa notória e gloriosa questão desorganizada. Na escrita criativa, a localidade evidencia a humanidade. Quanto mais sabemos sobre onde uma história se passa, quanto mais cores locais e texturas, quanto mais humanas as personagens se tornam, mais relacionáveis, não menos. O mito da identidade nacional e o vocabulário de vir de algum local, nos confunde por nos colocar em categorias exclusivas mútuas. Na verdade, todos somos multi-locais, multi-camadas. Começar nossas conversas reconhecendo essa complexidade nos deixa mais próximos, eu penso, e não mais afastados. Então, da próxima vez em que for apresentada, adoraria ouvir a verdade: “Taiye Selasi é um ser humano, como todos aqui. Ela não é uma cidadã do mundo, mas uma cidadã dos mundos. Ela é local de Nova Iorque, Roma e Acra.” 

Obrigada. 

(Aplausos) 

Traduzido por Gabriela Balieiro Moreira

Revisado por Rafael Portezan

Daniel Munduruku + São Paulo = ancestralidade e literatura

Daniel Munduruku é um escritor brasileiro pertencente à etnia indígena munduruku. Nascido no Pará, fez os cursos de mestrado e de doutorado na cidade de São Paulo, cidade que pretendeu homenagear, em 2017, quando ela completava 463 anos. Na ocasião, Daniel se filmou lendo o prefácio de seu livro “Crônicas de São Paulo: Um olhar indígena”, publicado pela editora Callis, em 2004. Nesta publicação, o escritor trata de alguns bairros da cidade que possuem nomes indígenas, regiões por onde já perambulou e das quais se aproximou mais via pesquisa. Nesse processo, Daniel aproveitou para refletir sobre seu próprio lugar em São Paulo ao mesmo tempo em que procurou estar em sintonia com ancestrais paulistanos.

Cristina Bailey e Regina Zilberman, entrevistando Daniel em 2010, partem de uma referência a “Crônicas de São Paulo […]” para perguntar a ele “de que modo ‘um olhar indígena’ sobre a realidade difere de um olhar ‘negro’ ou [de] um olhar ‘branco’?” A entrevista merece ser lida por todos que desejarem se familiarizar, ainda que de forma sucinta, com o modo como o escritor percebia a si e a elementos da sociedade brasileira na época. Os interessados em questões migratórias se atentarão, por exemplo, a sua menção a Eliane Potiguara, a quem reconhece “pela coragem que sempre teve ao escrever sobre a diáspora indígena, sobretudo dos indígenas nordestinos”. (Para outras indicações de textos produzidos por ou sobre indígenas, parece viável recorrer à seleção feita por Janice Cristine Thiél a pedido da Carta Educação.)


Abaixo, seguem dois textos de Munduruku, uma crônica do livro “Crônicas de São Paulo: Um olhar indígena”, por meio do qual a cidade de São Paulo é lida por alguém que passa a habitá-la, no processo estabelecendo conexões, identificando similaridades e diferenças, quiçá, complementaridades. E, na sequência, um texto publicado no blogue do escritor, em que ele lida com as ideias de pertencimento e de identidade e nos indica as expressões mais adequadas para fazermos referência aos originários do Brasil.

Desejamos a todos uma boa leitura! E não se esqueçam de compartilhar este post com os amigos, de perto ou de longe!

Tatuapé – o caminho do tatu

Uma das mais intrigantes invenções humanas é o metrô. Não digo que seja intrigante para o homem comum, acostumado com os avanços tecnológicos. Penso no homem da floresta, acostumado com o silêncio da mata, com o canto dos pássaros ou com a paciência constante do rio que segue seu fluxo rumo ao mar. Penso nos povos da floresta.

Os índios sempre ficam encantados com a agilidade do grande tatu metálico. Lembro de mim mesmo quando cheguei a São Paulo. Ficava muito tempo atrás desse tatu, apenas para observar o caminho que ele fazia.

O tatu da floresta tem uma característica muito interessante: ele corre para sua toca quando se vê acuado pelos seus predadores. É uma forma de escapar ao ataque deles. Mas isso é o instinto de sobrevivência. Quem vive na mata sabe bem lá dentro de si, que não se pode permitir andar desatento, pois corre um sério perigo de não ter amanhã.

O tatu metálico da cidade não tem este medo. É ele que faz o seu caminho, mostra a direção, rasga os trilhos como quem desbrava. É ele que segue levando pessoas para os seus destinos. Alguns sofrem com a sua chegada, outros sofrem com sua partida.

Voltei a pensar no tatu da floresta, que desconhece o próprio destino, mas sabe aonde quer chegar. Pensei também no tempo de antigamente, quando o Tatuapé era um lugar de caça ao tatu. Índios caçadores entravam em sua mata apenas para saber onde estavam as pegadas do animal. Depois eles ficavam à espreita daquele parente, aguardando pacientemente sua manifestação. Nessa hora – quando o tatu saía da toca – eles o pegavam e faziam um suculento assado que iria alimentar os famintos caçadores.

Voltei a pensar no tatu da cidade, que não pode servir de alimento, mas é usando como transporte para a maioria das pessoas poder encontrar seu próprio alimento. Andando no metrô que seguia rumo ao Tatuapé, fiquei mirando os prédios que ele cortava como se fossem árvores gigantes de concreto. Naquele itinerário eu ia buscando algum resquício das antigas civilizações que habitaram aquele vale. Encontrei apenas urubus que sobrevoavam o trem que, por sua vez, cortava o coração da Mãe Terra como uma lâmina afiada. Vi pombos e pombas voando livremente entre as estações. Vi um gavião que voava indiferente por entre os prédios. Não vi nenhum tatu e isso me fez sentir saudades de um tempo em que a natureza imperava nesse pedaço de São Paulo habitado por índios Puris. Senti saudade de um ontem impossível de se tornar hoje novamente.

Pensando nisso deixei o trem me levar entre Itaquera e o Anhangabaú. Precisava levar minha alma ao princípio de tudo.

A crônica em questão foi divulgada nos sites de Ailton Krenak e de Margarida Caetano.


Usando a palavra certa pra doutor não reclamar

Na reflexão anterior falei sobre os equívocos que cercam a palavra índio. Fiz uma provocação e tenho certeza que muitas pessoas, especialmente professores, ficaram com a “pulga atrás da orelha”. Se assim aconteceu, alcancei meu objetivo. A inquietação é já um princípio de mudança. Ficar incomodado com os saberes engessados em nossa mente ao longo dos séculos é uma atitude sábia de quem se percebe parte do todo.

É sabido que esta palavra tem, às vezes, um quê de inocência em quem a usa. Tem quem a utiliza conscientemente também. Sabe que se trata de uma atitude política e fica mais fácil para os interlocutores entenderem do que estão falando. Aliás, esta palavra foi devidamente utilizada pelo movimento indígena no início dos anos 1970. Foi uma forma de mostrar consciência étnica. Antes disso não havia uma consciência pan-indígena por parte dos povos nativos. Eram grupos isolados em suas demandas políticas e sociais. Cada grupo lutava por suas próprias necessidades de sobrevivência. Somente depois que começaram a encontrar os outros grupos durante as famosas assembléias indígenas – patrocinadas pela Igreja católica, através do recém criado Conselho Indigenista Missionário – CIMI – é que as lideranças passaram a ter clareza de que se tratavam de problemas comuns a todos os grupos. A partir disso o termo índio passou a ter uma ressignificação política interessante. Notem, no entanto, que foi um termo usado na relação política com o estado brasileiro. Cada grupo continuou a se chamar pela própria denominação tradicional. Isso não significou abrir mão do jeito próprio de se chamar. Quando muito, chamavam para (sic.) os outros grupos ou pessoas indígenas utilizando o termo parente.

Aqui caberia outra reflexão que deverá vir brevemente. No entanto, devo deixar claro que o termo parente é usado pelos indígenas para todos os seres (vivos ou não-vivos). Chamar alguém de parente é colocá-lo numa rede de relações que se confunde com a própria compreensão cosmológica ancestral. Mesmo na língua portuguesa podemos observar que se trata de uma palavra que une concepções (par+ente) que denota um envolvimento que permite compreendermos que dois ou mais seres se juntam numa rede consangüínea. Do ponto de vista indígena isso vai além da consaguinidade e se insere numa cosmologia cuja crença coloca todos os seres (entes) numa teia de relações. Somente neste contexto é possível compreender a intrínseca relação dos indígenas com a natureza. Isso é, no entanto, assunto para outra conversa.

Até aqui tenho usado outra palavra para referir-me aos povos ancestrais. Ora eu uso nativo, ora indígena. Qual seria a certa? Ambas estão correta (sic.) para referir-se a uma pessoa pertencente ao um
(sic.) povo ancestral. Por incrível que possa parecer não há relação direta entre as palavras índio e indígena, embora o senso comum tenha sempre nos levado a crer nisso. Basta um olhadela (sic.) num bom dicionário que logo se perceberá que há variações em uma e noutra palavra. No duro mesmo os dicionários têm alguma dificuldade em definir com precisão o que seria o termo índio. Quando muito dizem que é como foram chamados os primeiros habitantes do Brasil. Isso, no entanto, não é uma definição é um apelido e apelido é o que se dá para quem parece ser diferente de nós ou ter alguma deficiência que achamos que não temos. Por este caminho veremos que não há conceitos relativo (sic.) ao termo índio, apenas preconceito: selvagem, atrasado, preguiçoso, canibal, estorvo, bugre são alguns deles. E foram estas visões equivocadas que chegaram aos nossos dias com a força da palavra.

Por outro lado o termo indígena significa “aquele que pertence ao lugar”, “originário”, “original do lugar”. Se pode notar, assim, que é muito mais interessante reportar-se a alguém que vem de um povo ancestral pelo termo indígena que índio (sic.). Neste sentido eu sou um indígena Munduruku e com isso quero afirmar meu pertencimento a uma tradição específica com todo o lado positivo e o negativo que essa tradição carrega e deixar claro que a generalização é uma forma grotesca de chamar alguém, pois empobrece a experiência de humanidade que o grupo fez e faz. É desqualificar o modus vivendis dos povos indígenas e isso não é justo e saudável.

Outra palavrinha traiçoeira e corriqueiramente usada para identificar os povos indígenas é tribo. É comum as pessoas me abordarem com a pergunta: qual é sua tribo? Normalmente fico sem jeito e acabo respondendo da maneira tradicional sem muita explicação. Sei que é um conceito entrevado na mente das pessoas e que só vai sair mediante muita explicação por muito tempo.

Afinal, o que tem de errado com a palavra? A antiga ideia de que nossos povos são dependentes de um Povo maior. A palavra tribo está inserida na compreensão de que somos pequenos grupos incapazes de viver sem a intervenção do estado. Ser tribo é estar sob o domínio de um senhor ao qual se deve reverenciar. Observem que essa é a lógica colonial, a lógica do poder, a lógica da dominação. É, portanto, um tratamento jocoso para tão gloriosos povos que deveriam ser tratados com status de nações uma vez que têm autonomia suficiente para viver de forma independente do estado brasileiro. É claro que não é isso que se deseja, mas seria fundamental que ao menos fossem tratados com garbo.

Se não pode chamá-los de tribo, como chamá-los? Povo. É assim que se deveria tratá-los. Um povo tem como característica sua independência política, religiosa, econômica e cultural. Nossa gente indígena tem isso de sobra e ainda que estejamos vivendo “à beira do abismo” trazido pelo contato, podemos afirmar com convicção que somos povos íntegros em sua composição e queremos estar a serviço do Brasil.

Uma última palavra: são os “índios”, brasileiros? Que tal desentortar o pensamento e inverter a pergunta: serão os brasileiros, “índios”? Será que a ordem dos fatores irá alterar o produto? Não saberia dizer, mas o que observo é que há um abismo entre o ser e o não-ser ou entre o não-ser e o ser. Nesse duelo, os indígenas têm levado a pior.

Texto nº 3 (três) da série Mundurukando.

Observações: 1) Trechos em itálico, grifos de Daniel Munduruku; trechos em negrito, grifos nossos. 2) Transcrevemos o artigo da forma como foi publicado no blogue do escritor.


Cabeçalho do blogue do escritor

Mary Maker e a luta por educação para garotas refugiadas

Acompanhe o discurso feito por Mary Maker em uma edição do TEDxKakumaCamp, ocorrida em junho de 2018:


O vídeo pode ser assitido com legendas em português. No ícone “Subtitles” (“Legendas”), escolha a opção “More languages” (“Mais línguas”) e, finalmente, selecione “Portuguese, Brazilian” (“Português brasileiro).

A seguir, você encontra a transcrição do discurso feito por Mary Maker. Neste caso, se quiser ter acesso a uma versão do discurso em português, clique aqui.

Why I fight for the education of refugee girls (like me)

After fleeing war-torn South Sudan as a child, Mary Maker found security and hope in the school at Kenya’s Kakuma Refugee Camp. Now a teacher of young refugees herself, she sees education as an essential tool for rebuilding lives — and empowering a generation of girls who are too often denied entrance into the classroom. “For the child of war, an education can turn their tears of loss into a passion for peace,” Maker says.

We do not choose where to be born. We do not choose who our parents are. But we do choose how we are going to live our lives. 

I did not choose to be born in South Sudan, a country rife with conflict. I did not choose my name — Nyiriak, which means “war.” I’ve always rejected it and all the legacy it was born into. I choose to be called Mary. As a teacher, I’ve stood in front of 120 students, so this stage does not intimidate me. 

My students come from war-torn countries. They’re so different from each other, but they have one thing in common: they fled their homes in order to stay alive. Some of them belong to parents back home in South Sudan who are killing each other because they belong to a different tribe or they have a different belief. Others come from other African countries devastated by war. But when they enter my class, they make friends, they walk home together, they do their homework together. There is no hatred allowed in my class. 

My story is like that of so many other refugees. The war came when I was still a baby. And my father, who had been absent in most of my early childhood, was doing what other men were doing: fighting for the country. He had two wives and many children. My mother was his second wife, married to him at the age of 16. This is simply because my mother came from a poor background, and she had no choice. My father, on the other hand, was rich. He had many cows. 

Gunshots were the order of the day. My community was constantly under attack. Communities would fight each other as they took water along the Nile. But that was not all. Planes would drop the spinning and terrifying bombs that chopped off people’s limbs. But the most terrifying thing for every single parent was to see their children being abducted and turned into young soldiers

My mother dug a trench that soon became our home. But yet, we did not feel protected. She had to flee in search of a safe place for us. I was four years old, and my younger sister was two. We joined a huge mass of people, and together we walked for many agonizing days in search of a secure place. But we could barely rest before we were attacked again. I remember my mother was pregnant, when she would take turns to carry me and my younger sister. 

We finally made it across the Kenyan border, yes. But that was the longest journey that I have ever had in my whole life. My feet were raw with blisters. To our surprise, we found other family members who had fled into the camp earlier on, where you all are today, the Kakuma camp. Now, I want you all to be very quiet just for a moment. Do you hear that? The sound of silence. No gunshots. Peace, at last. That was my first memory of this camp. When you move from a war zone and come to a secure place like Kakuma, you’ve really gone far. 

I only stayed in the camp for three years, though. My father, who had been absent in most of my early childhood, came back into my life. And he organized for me to move with my uncle to our family in Nakuru. There, I found my father’s first wife, my half sisters and my half brothers. I got enrolled in school. I remember my first day in school — I could sing and laugh again — and my first set of school uniforms, you bet. It was amazing. But then I came to realize that my uncle did not find it fit for me to go to school, simply because I was a girl. My half brothers were his first priority. He would say, “Educating a girl is a waste of time.” And for that reason, I missed many days of school, because the fees were not paid. My father stepped in and organized for me to go to boarding school. I remember the faith that he put in me over the couple of years to come. He would say, “Education is an animal that you have to overcome. With an education, you can survive. Education shall be your first husband.” And with these words came in his first big investment. I felt lucky! 

But I was missing something: my mother. My mother had been left behind in the camp, and I had not seen her since I left it. Six years without seeing her was really long. I was alone, in school, when I heard of her death. I’ve seen many people back in South Sudan lose their lives. I’ve heard from neighbors lose their sons, their husbands, their children. But I never thought that that would ever come into my life. 

A month earlier, my stepmother, who had been so good to me back in Nakuru, died first. Then I came to realize that after giving birth to four girls, my mother had finally given birth to something that could have made her be accepted into the community — a baby boy, my baby brother. But he, too, joined the list of the dead. 

The most hurting part for me was the fact that I wasn’t able to attend my mother’s burial. I wasn’t allowed. They said her family did not find it fit for her children, who are all girls, to attend her burial, simply because we were girls. They would lament to me and say, “We are sorry, Mary, for your loss. We are sorry that your parents never left behind any children.” And I would wonder: What are we? Are we not children? In the mentality of my community, only the boy child counted. And for that reason, I knew this was the end of me. 

But I was the eldest girl. I had to take care of my siblings. I had to ensure they went to school. I was 13 years old. How could I have made that happen? I came back to the camp to take care of my siblings. I’ve never felt so stuck. But then, one of my aunts, Auntie Okoi, decided to take my sisters. My father sent me money from Juba for me to go back to school. Boarding school was heaven, but it was also so hard. I remember during the visiting days when parents would come to school, and my father would miss. But when he did come, he repeated the same faith in me. This time he would say, “Mary, you cannot go astray, because you are the future of your siblings.” 

But then, in 2012, life took away the only thing that I was clinging on. My father died. My grades in school started to collapse, and when I sat for my final high school exams in 2015, I was devastated to receive a C grade. OK, I keep telling students in my class, “It’s not about the A’s; it’s about doing your best.” That was not my best. I was determined. I wanted to go back and try again. But my parents were gone. I had no one to take care of me, and I had no one to pay that fee. I felt so hopeless. 

But then, one of my best friends, a beautiful Kenyan lady, Esther Kaecha, called me during this devastating moment, and she was like, “Mary, you have a strong will. And I have a plan, and it’s going to work.” OK, when you’re in those devastating moments, you accept anything, right? So the plan was, she organized some travel money for us to travel to Anester Victory Girls High School. I remember that day so well. It was raining when we entered the principal’s office. We were shaking like two chickens that had been rained on, and we looked at him. He was asking, “What do you want?” And we looked at him with the cat face. “We just want to go back to school.” Well, believe it or not, he not only paid our school fees but also our uniform and pocket money for food. Clap for him. 

(Applause) 

When I finished my high school career, I became the head girl. And when I sat for the KCSE for a second time, I was able to receive a B minus. Clap. 

(Applause) 

Thank you. 

So I really want to say thank you to Anester Victory, Mr. Gatimu and the whole Anester fraternity for giving me that chance. 

From time to time, members of my family will insist that my sister and I should get married so that somebody will take care of us. They will say, “We have a man for you.” I really hate the fact that people took us as property rather than children. Sometimes they will jokingly say, “You are going to lose your market value the more educated you become.” But the truth is, an educated woman is feared in my community. But I told them, this is not what I want. I don’t want to get kids at 16 like my mother did. This is not my life. Even though my sisters and I are suffering, there’s no way we are heading in that direction. I refuse to repeat history. Educating a girl will create equal and stable societies. And educated refugees will be the hope of rebuilding their countries someday. Girls and women have a part to play in this just as much as men. 

Well, we have men in my family that encourage me to move on: my half brothers and also my half sisters. When I finished my high school career, I moved my sisters to Nairobi, where they live with my stepsister. They live 17 people in a house. But don’t pity us. The most important thing is that they all get a decent education. The winners of today are the losers of yesterday, but who never gave up. And that is who we are, my sisters and I. And I’m so proud of that. My biggest investment in life — 

(Applause) 

is the education of my sisters. Education creates an equal and fair chance for everyone to make it. I personally believe education is not all about the syllabus. It’s about friendship. It’s about discovering our talents. It’s about discovering our destiny. I will, for example, not forget the joy that I had when I first had singing lessons in school, which is still a passion of mine. But I wouldn’t have gotten that anywhere else. As a teacher, I see my classroom as a laboratory that not only generates skills and knowledge but also understanding and hope. Let’s take a tree. A tree may have its branches cut, but give it water, and it will grow new branches. For the child of war, an education can turn their tears of loss into a passion for peace. And for that reason, I refuse to give up on a single student in my class. 

(Applause) 

Education heals. The school environment gives you a focus to focus ahead. Let’s take it this way: when you’re busy solving mathematical equations, and you are memorizing poetry, you forget the violence that you witnessed back home. And that is the power of education. It creates this place for peace. Kakuma is teeming with learners. Over 85,000 students are enrolled in schools here, which makes up 40 percent of the refugee population. It includes children who lost years of education because of the war back home. And I want to ask you a question: If education is about building a generation of hope, why are there 120 students packed in my classroom? Why is it that only six percent of the primary school students are making it to high school, simply because we do not have enough places for them? And why is it that only one percent of the secondary school graduates are making it to university? 

I began by saying that I am a teacher. But once again, I have become a student. In March, I moved to Rwanda on a scholarship program called “Bridge2Rwanda.” It prepares scholars for universities. They are able to get a chance to compete for universities abroad. I am now having teachers telling me what to do, instead of the other way round. People are once again investing in me. 

So I want to ask you all to invest in young refugees. Think of the tree that we mentioned earlier. We are the generation to plant it, so that the next generation can water it, and the one that follows will enjoy the shade. They will reap the benefits. And the greatest benefit of them all is an education that will last. 

Thank you. 


Indo além

Quer saber mais sobre o programa Bridge2Rwanda do qual Mary está participando, leia esta reportagem ou visite o site dessa iniciativa do campo educacional que pretende preparar jovens africanos para serem elegíveis às maiores universidades do mundo e para se tornarem líderes no continente.

Quer conhecer um pouco de Kakuma, onde Mary viveu e trabalhou? Aqui você encontra algumas fotos e uma apresentação de características desse campo de refugiados queniano que completará em breve 30 anos de existência.

Kakuma – Quênia

Ah, você quer saber porque educar meninas refugiadas? A ACNHUR ajuda a esclarecer. Confira!

Bennet Omalu, um gigante

Bennet Omalu é nigeriano e atua na área da saúde nos Estados Unidos. Patologia forense e neuropatologia compreendem suas áreas de atuação no âmbito clínico. Já enquanto pesquisador, Omalu se dedica, por exemplo, a investigar a encefalopatia traumática crônica em esportistas e o transtorno do estresse pós-traumático em militares veteranos1.

Bennet Omalu
Bennet Omalu

Omalu saiu do anonimato quando seus estudos o conduziram à identificação de uma doença, a encefalopatia traumática crônica (ETC). Essa descoberta pôs em evidência danos específicos e gravíssimos à saúde mental de atletas sujeitos a pancadas em suas cabeças enquanto treinando ou jogando – tal como acontece com jogadores de hóquei no gelo e, particularmente, com jogadores de futebol americano. Por temer prejuízos, a liga estadunidense de futebol americano fez o que esteve a seu alcance, no começo deste século 21, para desacreditar Omalu, questionando, publicamente, a validade dos resultados da pesquisa que ele vinha desenvolvendo.

Bennet Omalu e Julian Bailes
Bennet Omalu e Julian Bailes

I think it was an amalgamation of faith and science that made me even to save his brain [Mike Webster’s brain]. I had no reason examining that brain the way I did. I did not know what I was looking for […] Bennet Omalu, fevereiro de 2016.

Os avanços científicos e os percalços sociais divisados por Omalu em decorrência da repercussão de sua descoberta foram registrados por Jeanne Marie Laskas, primeiramente em uma reportagem para revista GQ, e em seguida, em um livro. Eles também serviram de inspiração para um filme concebido por Ridley Scott e dirigido por Peter Landesman, lançado em 2015.

Intitulado “Concussion”, o filme surgiu identificado pelo título “Um homem entre gigantes” no Brasil. Nele, Omalu foi interpretado por Will Smith, que se empenhou na materialização da prosódia do inglês nigeriano, recebendo, dentre outros, o Variety Creative Impact in Acting Award, no Palm Springs International Film Festival de 2016, por sua atuação.

Este slideshow necessita de JavaScript.

Omalu não é único imigrante a ser retratado no filme em questão. A narrativa fílmica também nos apresenta a Prema, jovem enfermeira queniana que foi para os Estados Unidos, para dar continuidade a seus estudos. Na “vida real”, o vínculo entre Omalu e Prema se estreitou enquanto ambos frequentavam a mesma igreja. Eles namoraram, casaram-se e hoje têm dois filhos.

Bennet Omalu, Prema Mutiso e seus filhos Mark e Ashly
Bennet Omalu, Prema Mutiso e seus filhos Mark e Ashly

Em “Um homem entre gigantes”, Prema ocupa um espaço secundário e não se menciona sua contribuição para os estudos de Omalu. Ela é interpretada pela inglesa Gugu Mbatha-Raw, que também tem histórias de imigração na família. O pai da atriz, por exemplo, que é próximo dela, é sul-africano e vive na Inglaterra. A própria Gugu tem realizado cada vez mais trabalhos nos Estados Unidos. Em janeiro de 2015, ela vivia em West Hollywood, na Califórnia, e sempre que possível, visitava regiões do entorno que lhe permitissem ter um contato maior com a natureza, tal como acontecia na região em que cresceu2.

——–

——–

O mais interessante da história de Omalu talvez seja a constatação de que sua idealização dos Estados Unidos não constituiu um entrave para o desenvolvimento de suas pesquisas. O país, é claro, lhe ofereceu a infraestrutura para que sua curiosidade, sua dedicação à ciência e seu compromisso com a integridade humana se conjugassem de forma a permitir que interessados por esportes de alto impacto começassem a praticá-los conscientes dos riscos que correrão – inclusive, este público está cada vez mais perto de poder contar com medidas profiláticas, capazes de amenizar danos cerebrais causados por sua prática esportiva.

Mas a sociedade que primeiro usufruirá desses benefícios é a mesma que a princípio rejeitou modos de pensar, de fazer e de ser que percebeu como alheios e, por isso, como menores. A rejeição a Omalu, tachado como um estrangeiro desrespeitador de um esporte caro aos estadunidenses, e os inúmeros respingos da dificuldade deste povo em reconhecer o mérito de um negro que fez transcender seu campo de atuação, assim, deixando claro sua perícia para atuar na ciência, área que muitos querem ver embranquecida, certamente respondem por vários dos obstáculos enfrentados por Omalu enquanto imigrante, especialmente enquanto alguém que deseja se integrar em uma sociedade que não é originalmente a sua ao mesmo tempo em que procura preservar quem é.

Indiretamente, sua história nos faz pensar no papel a ser desempenhado por sociedades receptoras que desejem ser também acolhedoras, fomentando a aceitação entre pessoas de países diferentes ou provenientes de regiões diferentes de um mesmo país, para que aquilo que as aproxima seja alçado ao primeiro plano de suas vidas. Dez anos depois da publicação do primeiro artigo de Omalu sobre a ETC, uma pesquisa conduzida pelo Departamento de Assuntos dos Veteranos do governo dos Estados Unidos e pela Universidade de Boston encontrou evidências dessa doença em 87 indivíduos de um conjunto de 91 ex-jogadores da liga estadunidense de futebol americano3. Curiosamente, nessa mesma época Omalu dizia acreditar ainda não ter sido aceito pelos Estados Unidos. Para ele, ainda aconteciam coisas em sua vida que o faziam lembrar-se de que era um “outsider”4.

I was naïve. […] There are times I wish I never looked at Mike Webster’s brain. It has dragged me into worldly affairs I do not want to be associated with. Human meanness, wickedness, and selfishness. People trying to cover up, to control how information is released. I started this not knowing I was walking into a minefield. That is my only regret. Bennet Omalu, setembro de 2009.

United Status Sports Academy
Dr. Bennet Omalu recebeu o Dr. Ernst Jokl Sports Medicine Award, em 2016, da Academia de Esportes do Estados Unidos, o maior prêmio dessa academia em Medicina do Esporte. Photo: United States Sports Academy.

Quantas histórias como a de Bennet Omalu precisaremos conhecer para que nos envolvamos com a desconstrução das subalternidades e assumamos a integração de diversos enquanto um gesto sociopolíticopsicocultural com potencial emancipatório? E por que não agora?

Mais informações no site da Edufba.
Mais informações no site da Edufba.

 

“Managed Diversity”, poema de Daniel Borzutzky

Through predictive analytics I understood the inevitability of the caged-up babies
 
They keep coffins at the border for when the refugees get too far from home
 
How many thousands of bodies can we fit in a tent or a swimming pool
 
We can live without the unknown in front of us if we keep enough babies in cages
 
The cardboard box sleeps one kid comfortably
 
Two is snug   efficient   recommended in times of austerity

Relational values change in relation to market sentiments

This is the danger of having too much access to illegal bodies
 
Let’s pretend the illegal bodies are bankers
 
Let’s stick all the bankers in cages
 
Let’s shove shit in their mouths
 
Let’s pretend they are eating cryptocurrency
 
Let’s create a crisis let’s induce inflation
 
Let’s undervalue the cost of their bodies

I dream of an economy where one arrested immigrant is replaced with one dead banker
 
I am not responsible for my dreams rather I am responsible for what I do with my dreams
 
When the sleep medication wears off I am alone with the machines that watch me	
 
The global economy brightens my room with the surveillance of my rotten assets

Copyright © 2018 by Daniel Borzutzky. Originally published in Poem-a-Day on November 14, 2018, by the Academy of American Poets.


Ouça o poema!

Daniel Borzutsky é escritor, tradutor e professor, tendo poemas, ensaios e textos ficcionais publicados. Filho de chilenos imigrantes, nasceu e cresceu nos Estados Unidos, em Pittsburgh e em Chicago, respectivamente. Tem textos traduzidos para o espanhol, o francês, o búlgaro e o turco. Em 2016, recebeu o National Book Award for Poetry por seu livro de poemas The Performance of Becoming Human.

Daniel Borzutzky
Daniel Borzutzky, por Angel Dean Lopez (1024 × 684 × 72 dpi)

Borzutsky aborda as múltiplas formas de violência neoliberal que transformam as sociedades em um inferno, arrasando vidas com a aceleração de mudanças climáticas profundas, com desigualdade e xenofobia, com agressões sendo perpetradas por sistemas burocráticos, por políticos e por policiais – em suma, sendo desencadeadas pelo capitalismo. 


I think it’s hopeful to write poetry about how awful the world is. Daniel Borzuztky ao Chicago Tribune.


Daniel Borzuztky
Daniel Borzuztky (© Sean Patrick Cain 1000 x 1468 × 1339)

If I have any idea why I write poems, and I’m not sure I do, I might guess, to paraphrase Don Mee Choi,that I write poems in order to expose what a neoliberal inferno is like, what a racist, capitalist segregated, privatized death-state, rotten carcass economy looks like: who it eats, who it shits out, who it absorbs, who it refuses to absorb, what it kills, how it kills, why it kills, under what conditions it kills, how much money it uses to kill, what it smells like, what it makes its citizens smell like, what it does to the brain and the body of the people it hates and loves. I think I write poems to expose these things. More importantly, I hope that in real life I work hard enough to expose these things: (exposing, communicating, derailing, battling against, slowing down, reversing, subverting, not dying from, not being subsumed by, finding some way of not being completely absorbed by the horrors of the rotten carcass economy, finding some hope in battle). Daniel Borzuztky à Poetry Foundation.


In The Performance of Becoming Human, he draws hemispheric connections between theUS and Latin America, specifically border and immigration politics, economicdisparity, political violence, and the disturbing rhetoric of capitalism andbureaucracies. For Borzutsky, to become human is to navigate these borders,including those of institutions, the realities of over- and under-development,and the economies of privatization, in which humans endure state-sanctioned andsystemic abuses. Blue Flower Arts, uma agência de palestrantes do campo literário)