Emigrantes portugueses na construção da literatura lusógrafa contemporânea

Rumamos a Dortmund, na Alemanha, para conhecer uma iniciativa da Oxalá Editora, que se dedica à descoberta e à publicação de escritores portugueses emigrados. Referimo-nos à publicação, em 2018, do livro “Contos da Emigração: Homens que sofrem de sonhos”. No site da editora, encontramos uma entrevista do responsável pelo projeto, o jornalista (?) Mário dos Santos, conduzida por Nuno Gomes Garcia, autor de um dos textos da coletânea. Abaixo, ela surge acompanhada por outra, do próprio Nuno, em que ele comenta sobre o texto que escreveu.

Nuno Gomes Garcia conversa com Mário Dos Santos

«Contos da emigração: Homens que sofrem de sonhos» é o mais recente livro, uma coletânea de 12 contos, idealizado por Mário dos Santos, fundador e editor da Oxalá Editora, uma chancela orientada para a Diáspora. Os direitos da obra reverterão em favor da Plataforma de Apoio aos Refugiados.

Sediada em Dortmund, na Alemanha, a Oxalá Editora tem por objetivo fazer chegar a voz dos 5 milhões de Portugueses que vivem dispersos pelo estrangeiro aos 10 milhões de Portugueses que vivem em Portugal, distribuindo, para esse efeito, os livros tanto dentro como fora de Portugal.

Este livro, que mistura dois autores clássicos portugueses – Eça de Queirós e José Rodrigues Miguéis – com dez autores contemporâneos (nove dos quais expatriados), explora os caminhos da emigração, tanto os da década de 1960 como os mais recentes que datam do período da crise pós-2008.

Uma obra rica, que se alicerça na variedade de registo de cada autor – alguns deles já consagrados -, indo desde a ruralidade do interior português à urbanidade londrina ou alemã; do drama à sátira, explorando o momento do «salto», a dolorosa adaptação a diferentes culturas e idiomas, passando pela discriminação e a segregação sofridas na terra de acolhimento ou, o reverso da medalha, pelos surtos xenófobos e racistas contra outras comunidades, preconceitos extremistas que alguns emigrantes portugueses também partilham.

Mário, antes de nos debruçarmos sobre o livro, falemos um pouco do teu percurso. Tu fundaste o Portugal Post, um jornal mensal publicado na Alemanha em língua portuguesa, e há pouco decidiste dedicar-te inteiramente à Oxalá Editora. O que é que te levou a mudar de rumo?

Sim, de facto, estive à frente do jornal durante 25 anos. Achei que ao fim desses anos seria o momento de passar a pasta, digamos assim, a alguém que desse continuidade a um jornal com história e muito importante para a vida da Comunidade na Alemanha. Durante o meu percurso no jornal, houve ocasiões em que pessoas se me dirigiam dizendo que tinham coisas escritas (poesia, contos, histórias da sua vida…) na gaveta e que gostariam de as verem publicadas. Algumas dessas pessoas viviam na Alemanha, mas também havia gente de outros países que me diziam que gostariam de ver os seus escritos publicados e me desafiavam para o fazer. Percebi então que fazia sentido uma editora vocacionada para os autores da Diáspora. Em 2015, decidi criar a Oxalá Editora pensando já que daí a pouco tempo entraria no gozo da reforma e que esse seria um tempo para me dedicar àquilo de que sempre gostei, os livros.

A editora que também tem edições bilingues, em português e em alemão, veio de facto preencher um vazio que era evidente. Como editor, qual é o teu principal objetivo: fazer chegar a voz da diáspora a Portugal ou promover a literatura portuguesa na Alemanha?

Sim, há edições bilingues. Gostaria de destacar a tradução para alemão da obra de Sophia de Melo Andresen, «A menina do mar». Mas a minha principal preocupação são os autores que vivem no exterior, ou seja, a Oxalá Editora não se remete apenas à Alemanha. Há, inclusivamente, propostas de parceria provenientes de outros países. A ideia é ter uma casa editora que perceba a realidade da Diáspora. Sabes tão bem como eu que em Portugal não se dá a devida importância aos Portugueses que vivem no estrangeiro, sejam eles poetas ou carpinteiros; cientistas ou concierge… Mas também é verdade que hoje se considera mais «quem vive lá fora», apesar dos preconceitos face aos emigrantes. O meu objetivo é descobrir bons autores da Diáspora, vivam eles nas Américas, na Europa ou seja lá onde for, publicá-los e divulgá-los em Portugal. Muitos têm, digamos assim, esse sonho, o de serem reconhecidos, não só nas Comunidades onde vivem, mas também, por questões sentimentais, de ligação ao país, a Portugal, onde gostariam de ver os seus livros a circular. Isso é um pouco difícil, sabemos. Quer dizer, nalguns casos até não é tão difícil assim.

Falemos do livro, então, que tem um título que resume em poucas palavras a essência do que é ser emigrante. Mas diz-nos quais os escritores que participam na coletânea. Vivem todos fora de Portugal?

Com a exceção da Ana Cristina Silva, todos os outros vivem fora de Portugal. Eu convidei-a porque ela tem uma crónica no Portugal Post.

E a Oxalá também publicou «A mulher transparente», um dos romances da Ana Cristina Silva.

Exatamente. Os outros autores vêm do Reino Unido, de França e da Alemanha. A minha preocupação foi juntar autores que vivem e sentem a diáspora e, olhando para quem pudesse representar, digamos assim, o espírito do livro, convidei a Gabriela Ruivo Trindade, vendedora do prémio Leya e que vive em Londres. Falei ao Nuno Gomes Garcia, ou seja, contigo, também com obra publicada e reconhecida. Falei ainda com uma autora que vive em Hamburgo, a Cristina Torrão, e com o Miguel Szymanski, um autor que tem a particularidade de se sentir emigrante alemão em Portugal e emigrante português na Alemanha. Mas o livro vale por todas as histórias lavradas pela caneta e no sentir do que é estar distante de Portugal.

Os contos são todos inéditos?

Sim, os contos dos autores vivos são todos inéditos.

E por que razão optaste por juntar a voz de dois clássicos da literatura à voz de dez escritores contemporâneos?

Só para tentar dizer que também os escritores clássicos viveram fora do país. Eles foram tão emigrantes como nós. Muita da obra do José Rodrigues Miguéis, por exemplo, incide sobre temáticas da emigração. E o Eça de Queirós…

O Eça foi Cônsul em Paris.

Sim, foi, de certa forma, emigrante, tendo falecido em Paris, como se sabe. Essa ideia surgiu-me assim muito espontânea. Mostrar que os problemas da emigração são muito parecidos independentemente da época. O que eu espero é que as pessoas que leiam este livro se apercebam que mesmo autores que ficaram na História da Literatura viveram as situações que os emigrantes de hoje vivem.

Esperas uma boa receção da obra por parte do público português?

A obra também vai ser distribuída em Portugal pela Europress, a empresa distribuidora com a qual a Oxalá colabora. E na Diáspora, temos contactos com algumas livrarias e vamos também fazer a promoção da obra em muitos países e em quase todos os continentes. A recepção e a aceitação que o livro dependerá de muitos fatores. Mas o que posso desde já dizer é que vale a pena ler este livro para melhor perceber os Portugueses das sete partidas do mundo.

Mário, para terminarmos, fala-nos de um livro de que tenhas gostado.

Assim de repente, sugiro o Primo Levi.

Qual? O “Se isto é um homem?”

Exatamente! As pessoas que vivem no nosso tempo deveriam ler esse livro, que retrata o sofrimento das vítimas do Holocausto, num momento em que os governantes dos grandes países amedrontam o mundo com discursos belicistas e perigosos para a humanidade.

Os contos da coletânea:

  • «A salto» de Ana Cristina Silva
  • «Vida adiadas» de Cristina Torrão
  • «Um poeta Lírico» de Eça de Queirós
  • «Cab driver» de Gabriela Ruivo Trindade
  • «O apelo do vale» de Isabel Mateus
  • «O viajante clandestino» de José Rodrigues Miguéis
  • «Uma história verdadeira» de Luísa Coelho
  • «A minha bicicleta verde» de Miguel Szymanski
  • «O sobrinho» de Nuno Gomes Garcia
  • «Partida largada fugida» de Rita Sousa Uva

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris. Publicada em 26/03/2018 em https://www.oxalaeditora.com/conto-iemanja/nuno-gomes-garcia-conversa-com-m%C3%A1rio-dos-santos/. Acesso em: 05 out. 2019.


Capa da coletânea

Cap Magellan conversa com Nuno Gomes Garcia

Cap Magellan: Como acolheste o convite que te foi feito para participares na coletânea?

Nuno Gomes Garcia: Pensei imediatamente que era por uma boa causa. Não apenas porque os direitos revertem a favor da Plataforma de Apoio aos Refugiados, mas também por permitir a bons autores, quase todos expatriados, escreverem sobre um tema que inexplicavelmente é pouco tratado na literatura contemporânea portuguesa: a emigração. Um país que possui um terço dos seus cidadãos a viver fora do território português e que finge que a emigração não é uma componente estrutural da sua sociedade há mais de 500 anos está condenado a ser um país que não se compreende a ele próprio. Se Portugal tem 5 dos seus 15 milhões de nacionais a viver no estrangeiro, esse facto tem de se refletir obrigatoriamente na sua matriz cultural, nomeadamente na literatura.

CM: Porquê utilizar a metáfora dos legumes?

NGG: A minha escrita, acho que é visível em todos os romances que escrevi, leva-me sempre a expor as minhas inquietudes através da sátira e do “tremendismo”, no exagero. Ora, uma das coisas que mais me inquieta hoje na Europa é o regresso às questões identitárias, o recrudescimento dos nacionalismos protofascistas presentes em alguns governos e de outros componentes abertamente fascistas em algumas franjas da sociedade.

Como, a meu ver, não existe nada de mais ridículo, mesmo do ponto de vista da comicidade e do humor, do que um certo povo se sentir superior a outro, ou do que um ser humano odiar outro ser humano por causa da cor da sua pele, por exemplo… tendo isso em vista, eu tentei fazer a experiência de transportar toda essa problemática para o mundo dos vegetais.

Só para que o leitor compreenda que ver uma cenoura a odiar uma beterraba, ambas antropomorfizadas, por causa da cor da sua “casca” é tão absurdo como um humano odiar outro humano por causa da cor da sua pele, da religião ou da orientação sexual.

CM: A emigração é somente feita de mulheres e homens que sofrem de sonhos? Não achas que pode ser um pouco miserabilista como forma de apresentar a emigração?

NGG: Não creio que se possa reduzir os dez contos ao título da coletânea, que é por natureza subjetivo e que tem um certo pendor poético. O livro contém dez maneiras diferentes de olhar para o fenómeno da emigração. Dez contos que mostram as complexidades ligadas ao simples facto de trocar uma realidade social por outra. Se há emigrantes que realizam os seus sonhos, outros há que vivem autênticos pesadelos. O sofrimento, tal como as alegrias, são sentimentos inerentes à vida, logo também inerentes à emigração.

Disponível em: http://capmagellan.com/a-coletanea-contos-da-emigracao-chegou-as-livrarias/. Acesso em: 05 out. 2019.

Que possamos logo encontrar «Contos da emigração: Homens que sofrem de sonhos» em formato digital e, quiçá, em nossa livraria preferida!

Lina Meruane em entrevistas

Lina Meruane é a autora do romance “Sangue no olho”, texto discutido no 7º encontro do Leituras dos Girassóis. O livro, que cativou os membros do clube, aterrissou no Brasil como resultado da intervenção de Livia Deorsola, editora brasileira especializada em literatura hispano-americana. Sob os seus cuidados, a extinta editora Cosac Naify publicou a primeira edição do texto que, em 2018, entrava para o catálogo da SESI-SP editora, assim permanecendo ao alcance do público brasileiro.

Meruane nasceu no Chile e tem ascendentes palestinos. Vive hoje nos Estados Unidos, a partir de onde concilia sua atuação no campo da literatura com a carreira de professora universitária.

Lina Meruane – Foto de Daniel Mordzinski

Como toda leitora, tem seus livros prediletos – veja aqui e aqui. Enquanto alguém envolvida com a produção e o ensino de literatura latino-americana, tem escritores brasileiros sob o radar, como Clarice Lispector, que é ucraniana de nascimento, e Nélida Piñon, a imortal filha de espanhóis. Da primeira, Meruane se dedicou a analisar o conto “Legião estrangeira”. À segunda, fez referência em seu ensaio “Contra os filhos”, lançado no Brasil pela editora todavia, texto lido e comentado por escritores como Tércia Montenegro, Maria Clara Drummond e Sérgio Tavares.

A seguir listamos algumas das entrevistas concedidas por Meruane, aproveitando para destacar trechos que tratam de sua relação com a América Latina, de como entende a literatura, de seu romance “Sangue no olho” e, finalmente, de como se percebe. Como incentivo à leitura, ressaltamos que “Sangue no olho” é um ótimo romance. E que mesmo nas ocasiões em que o entrevistador não esteve à altura da tarefa, as considerações de Meruane acrescentam, nos instigando, portanto, a procurar por seus escritos e a demandar por mais traduções deles.

Vejamos:

  • Sobre a relação da Lina migrante com a América Latina:

Você mora nos EUA há anos. Você se enxerga mais próxima da literatura latino-americana ou da tradição norte-americana?

Sempre prestei muita atenção à produção literária da América Latina, e me mudei para Nova York para fazer um doutorado em literatura latino-americana. Essa é, portanto, a tradição que conheço melhor, e com a qual continuo dialogando. Leio certos autores norte-americanos (e vejo suas peças e seus filmes), mas não mais do que os europeus de modo geral, e com certeza leio menos norte-americanos do que franceses. Mas não importa tanto o lugar de onde se escreve: o que me interessa em um autor não é seu local de origem e sim a sua maneira de entender o literário, o modo de escrever, sua relação com certas tradições. Para mim, Faulkner é tão grande quanto Beckett, Woolf como Gertrude Stein, Mishima como Celine etc. No contemporâneo os temas e os ecos da literatura de nosso continente ressoam mais em mim, e minha escrita se articula com e certamente contra essa tradição. (1)

Como marca sua literatura o fato de viver fora de seu país?

A maneira que eu percebo é um pouco distinta da sua, eu vejo os escritores do meu tempo se movendo em muitas direções e para destinos distintos. Há um dinamismo não tão simples de ser traçado nem geográfica nem historicamente… Eu pertenço a uma família de migrantes; está na minha tradição estar inscrita no nomadismo e um tema recorrente quando nos encontramos é… a situação de nossas malas! Há sempre uma maleta ao redor da conversa e também, isso percebi muito depois, em meus romances. Sempre a protagonista está viajando, e a distância lhe permite ver o que deixa de maneira crítica. É como se as protagonistas de meus romances precisassem ver de longe para ver bem. (2)

Cortázar declarou que um dia se deu conta que ser um escritor latino-americano significava fundamentalmente que havia de ser um latino-americano escritor: havia de inverter os termos e a condição de latino-americano, e colocar isso também no trabalho literário. Como é ter o papel de uma escritora chilena em Nova York?

Cortázar foi, durante anos, um escritor cem por cento argentino e teve que se converter em latino-americano como acontece com muitos de nós quando vivemos no exterior. Do exterior, o impulso para juntarmos todos em um mesmo saco latino-americano é muito forte, simplifica as coordenadas e anula as diferenças, permite as generalizações. Eu continuo me sentindo uma escritora chilena, e reivindico acima de tudo política e solidariamente a minha latino-americanidade, mas estou permanentemente sub-estimando o fato de que há muita disparidade interna, não somente entre os países como também entre classes e etnias, verdadeiras batalhas silenciosas às quais se deve prestar atenção. Eu gostaria de acreditar que o que posso fazer neste território é ampliar um pouco os espaços da literatura latino-americana através do ensino das nossas culturas e literaturas, ou pelas conversas sobre livros maravilhosos produzidos em pontos diversos do continente e por escritores que sendo latino-americanos vivem no exterior, e também apoiando a possibilidade de que continuem falando as nossas diversas línguas nos Estados Unidos ao invés de passarmos todos à língua dominante. (3)

  • Sobre a literatura:

Há na literatura alguma ponte de salvação?

[…] O que penso é que a missão da literatura não é a da mobilização e, nem sequer, a da empatia com o outro: são efeitos desejáveis mas esta não é a sua missão, porque se a literatura se dedica a isso acaba se tornando propaganda com a pretensão de convencer. A literatura deve colocar perguntas e não resolvê-las, deve nos levar a pensar inclusive em questões contraditórias, deve nos levar a aprofundar sobre os conflitos humanos. Assim algo pode acontecer mas este algo profundo é raramente imediato: é um efeito a longo prazo e nunca, a salvação. (3)

Precisamente, todo o romance está imerso em debates éticos. Qual é o limite ético da literatura?

Eu queria dizer algo que fosse muito ético, mas lamentavelmente não vejo limites éticos dentro da literatura. Se quisermos ver cara a cara a monstruosidade que somos, há que se mostrar precisamente esses lugares onde toda a ética foi perdida, há que insistir nessas zonas escuras, ambíguas, remexer nesses limites incômodos, às vezes intoleráveis. Talvez aí se possa extrair, por oposição, uma ética, e um escritor ou escritora esperaria que essa tarefa cumpram os leitores: a de reagir ante o que se lê, a de refletir de maneira mais complexa sobre o que se coloca, a de se propor a participar eticamente, desde essa terrível claridade, do cenário social. (2)

  • Sobre o romance “Sangue no olho”:

Sangue no olho é sua primeira obra publicada no Brasil. Como ela se relaciona com o restante de sua obra ainda inédita em português?

Todos os meus livros, penso, são diferentes; cada um foi respondendo, ou tentando responder, a uma pergunta que, no momento, era urgente. Comecei trabalhando no território da infância feminina, examinando as maneiras como as meninas são educadas para serem mulheres, o disciplinamento feroz pelo qual passamos: eu estava interessada em mostrar essa zona obscura e indisciplinada da infância. Nisto se encaixam os meus três primeiros livros escritos no Chile, e talvez não seja tão estranho o fato de que eu os escrevi neste país, pois a disciplina também faz parte da ditadura na qual cresci. A saída do Chile há quinze anos introduziu novos cenários (Chile e Estados Unidos como paisagens distintas, mas também como vasos comunicantes. Bem ou mal, o meu país foi um laboratório de experimentos neoliberais dos anos oitenta) e novos temas, o que você mencionou antes, o da doença. Talvez o que todos os meus livros tenham em comum é que no centro há o corpo de uma mulher que resiste a certas normas, que leva as lógicas imperantes a extremos que podem ser prazerosos e redentores, mas também sinistros. (1)

Caso houvesse uma inversão de papéis em Sangue no olho e fosse a protagonista que cuidasse do outro, como seria? As mulheres se veem em posição mais vulnerável quando acometidas por uma doença, ou o gênero não importa?

O gênero importa muito. Historicamente, as mulheres prezam o sacrifício como um valor: a mãe deve se sacrificar por seu filho, o pai contribui; a esposa se sacrifica pelo marido mas não deve esperar o mesmo de volta; a filha se sacrifica pelos pais e, sobretudo, pela mãe porque lhes deve a vida enquanto seus irmãos se apoiam nela… Isso está poderosamente inscrito na cultura e se reforça o tempo todo através de discursos múltiplos sociais. Quando as mães conseguem dizer não aos pedidos de seus filhos sem sentirem culpa ou serem culpadas? Quando, na intimidade de um casal, a mulher logra colocar as suas necessidades acima da dos outros como quase sempre fazem os outros? Não são as filhas que se encarregam de cuidar dos pais idosos mais frequentemente? Não digo que sempre seja assim, o que digo é que custa mais às mulheres deixarem de agir assim porque foram educadas para servir e para sentir que os seus desejos e talentos possuam menos valor. Isso segue sendo assim e é difícil enxergar. Quando tenho alguma dúvida na minha vida pessoal, sempre, como regra, inverto a situação e penso no contrário: o que fariam o meu parceiro, o meu irmão, o meu pai ou o que faria nesta situação se eu fosse um homem? Não é que queira ser um homem, isso nem me passa pela cabeça. Nada mais é do que um exercício que me permite ver até que ponto obedeço ao chamado de uma regra cultural retrógrada e reajo a um desejo. Para não me prolongar, foi isso precisamente o que fiz ao escrever o meu romance, dar uma volta na relação do gênero e ver a situação clássica desde a sua inversão. Acredito que o que surpreende aos leitores é precisamente esta inversão: aí se enxerga as coisas muito melhor, e elas assustam muito mais. (3)

Tu último libro, Sangre en el ojo, fue publicado en distintos países de Europa como Francia, Alemania, Reino Unido, Italia y Holanda. ¿Cuáles crees que son las principales diferencias entre la recepción de tu obra en Europa y en América Latina?

Es difícil saber, yo no ando a la caza de las reseñas de mis libros pero mi impresión es que no hay una distinción clara entre Europa y América Latina, ese trazo continental es demasiado grueso. Hay muchas diferencias culturales e ideológicas y expectativas literarias entre los países de Europa así como entre los países americanos. Y además, en cada uno de esos lugares hay importantes diferencias de género, clase y raza, que se reflejan en la lectura, entonces no lo sé. Solo anecdóticamente te puedo comentar que  mientras que en Chile nadie leyó el contenido político de mi novela, en Italia no dejaron de reparar en los escasos momentos en que se comenta la relación entre cuerpo enfermo y dictadura, y mientras en Brasil algunos lectores celebraron la escena sexual en el avión, nadie más dijo nada, al menos que yo sepa sobre esto. Y en las sucesivas presentaciones de mi libro, hay lugares donde el público percibe el humor negro del libro y otros donde la respuesta es sería y acongojada. (4)

A protagonista disse em uma conversa com sua professora que só há um escritor cego. Imagino que tenha pensado em Borges, mas há na literatura ocidental certa corrente da literatura da cegueira. Você pensou nessa questão quando escrevia o livro?

Era Borges a figura, com efeito, porque a cegueira de Borges é única. Borges fica cego aos 50 anos, no momento em que começa a ser internacionalmente reconhecido, e fotografado. O rosto de Borges, com a vida perdida, com suas mãos de sábio sobre a bengala, é uma imagem icônica, indelével. É o grande cego da nossa literatura contemporânea. Não é que Lucina não saiba de Homero, de Milton, de Joyce. Então, o que ela quer dizer é que o grande, o contemporâneo, o cego terminal que os latino-americanos recordam é Borges. Por isso você adivinha. (2)

Foi influenciada por algum livro específico de um escritor cego (Borges é uma referência clara), ou sobre a cegueira de modo mais amplo?

[…] Eu tinha lido os livros mais canônicos da cegueira latino-americana, como “Sobre heróis e tumbas”, de Ernesto Sabato, e esse fabuloso conto de Clarice Lispector chamado “Amor”, mas meu romance não surge dessas leituras específicas, e sim da literatura da enfermidade, que enfrentei enquanto escrevia minha tese de doutorado. (5)

  • Sobre Lina Meruane:

En tus obras queda en evidencia el papel de la lectura, del ejercicio de la escritura, pero también el de las redes intelectuales y el de los afectos que se forman entre escritores, académicos e investigadores. ¿Se podría decir que el escritor contemporáneo ya no escribe aislado del mundo? ¿Cuál sería el lugar de la escritura y lectura en tu cotidianidad?

Pienso que hay muchas maneras de ser escritor; por resumir un poco y generalizar otro poco, diría que hay tres posiciones. Una es la del quien se plantea el aislamiento, el silencio, el bajo perfil que a veces es una decisión literaria y otras responde a la timidez o a la fobia social. Otra es la de quien piensa la escritura como plataforma mediática para obtener un estatus de celebridad, ahí hay mucha sobrexposición que puede acabar por distorsionar la propia escritura al volverla un medio para lograr un fin de orden publicitario. Ese es el lugar más peligroso y entre los dos extremos yo valoro más el del retraimiento de quien escribe por una necesidad íntima. Lo que me pasa a mí es que aunque necesito mucho silencio y tiempo para escribir, soy un animal social. Me da curiosidad la gente, me atrae hablar con gente y escucharla, y por supuesto me disgusta a ratos pero hay algo que me importa en el diálogo y en la discusión. Por eso formo redes, por eso presento mis libros, me importa la sala de clases donde la lectura, la escritura y la reflexión provocan algo fresco, por eso escribo ensayos que pretenden interpelar y columnas de opinión (aunque muy pocas ahora porque cansa mucho esa búsqueda de nuevos temas e ideas, yo no tengo tantas ideas, me conformo con tener unas poquitas, necesito tiempo para reflexionar y posicionarme en lo que ocurre cotidianamente). Todo eso es el espacio donde ocurre lo político y eso para mí es central en mi obra y en mi vida de los afectos. (4)

Ao discutir Ensaio sobre a cegueira, José Saramago declarou: “Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso”. Ao escrever Sangue no olho, você compartilha desta angústia sentida por Saramago?

São raras as vezes em que penso no leitor enquanto escrevo, eu não saberia dizer quem é o meu leitor… e muito menos como é, o que quer, o que busca. Por melhor ou pior que seja, eu sou a única leitora que posso imaginar e a única que posso agradar além de incomodar. Isso me dá uma enorme liberdade na hora de escrever, uma liberdade para ir até onde deva ir um romance mesmo quando este destino seja extremamente estranho e cruel. Nunca tratei com pena a leitora que eu sou, busco levar o romance até certos limites, fazer ver certas coisas que nem eu sei quais são quando começo a escrever. Por outro lado, sinceramente não acredito que os leitores adultos não saibam o quão cruéis nós, os seres humanos, somos. Não é essa a realidade que poderiam descobrir nem no meu romance ou em algum outro. Tenho a impressão de que não é a crueldade e sim os modos sofisticados em que, às vezes, aparece, os meios utilizados, as perguntas que nos obriga a fazer. Outra diferença que sinto perante esta afirmação de Saramago é que não sofro enquanto escrevo, por mais que a cena seja terrível. Não sofro com os personagens, não sofro com as suas digressões: toda a minha energia se volta para o material da escrita e não na sua profundidade moral. Se a frase não sai, se a cena não tem força, se o personagem não se estrutura, é quando me desespero. Sei que é bem-visto um escritor sofrer ao escrever — é um legado do romantismo, penso às vezes; noutras, penso que sofrer ou dizer que se sofre é uma justificativa necessária ao escritor perante o mundo quando não tem que se levantar de manhã cedo, tomar um ônibus lotado, e passar horas em um escritório ou uma fábrica. Tenho um trabalho em tempo integral, não tão sacrificado quanto o do operário ou do burocrata, é certo, mas talvez porque não preciso destas justificativas, posso dizer que desfruto muito quando tenho a chance de tirar tempo para escrever e encontro sucesso na execução de um texto que alcança até onde deve ir. Isso é o que sinto quando escrevo ficção, o grande prazer da escrita por si só, até quando o que esteja contando seja terrível, sei que se trata de um artifício. Dito isso, reconheço que senti algo bem diferente ao escrever o meu livro sobre a situação palestina, e creio que o sentimento foi assim porque estava falando das vidas reais das pessoas que sofrem e que são violentadas sistematicamente por outras: aí, sim, eu me vi muito comovida e indignada. (3)


Por fim, textos da escritora e afins:

  • Um excerto de Sangue no olho (Cosac Naify, 2015)
AMANHÃ

(Cá estou. Lá vou eu. Olhando outra vez pela janela do táxi, com o olhar fixo, tentando, da estrada, captar um pouco do horizonte, a silhueta agora oca de duas torres pulverizadas, a linha do céu mutilada junto ao brilho tênue do rio salpicado de estrelas, o néon do History Channel deslumbrante sobre a água. Vejo tudo sem ver, vejo tudo através da lembrança do já visto ou através dos teus olhos, Ignacio. Os faróis do táxi rasgavam uma leve neblina noturna de papel e metais chamuscados que se negava a se esfumar, grudava no vidro e o embaçava. O turco ultrapassava alguns carros aos trancos, mas também deixava outros nos ultrapassarem, velozes, buzinando. Vocês cochilavam, talvez tenham até caído no sono, embalados pelas inclementes aceleradas e freadas. Acomodei a testa na janela e fechei os olhos até ser sacudida, Ignacio, por tua voz, tão nova em minha vida que às vezes eu demorava a reconhecer como tua, tua voz que, aliás, mudava de tom quando você falava em outra língua. Era uma voz para dar instruções em inglês ao motorista do táxi: que saísse pela próxima exit, que virasse para o oeste, que seguisse em direção à Washington Bridge, ainda acesa no horizonte. Não tínhamos planejado cruzar aquela ponte enferrujada, não estávamos indo para o subúrbio, do outro lado, onde eu morei um dia e para onde nunca pretendi voltar. Estava voltada para o presente, eu, isso era tudo o que eu tinha enquanto deixávamos Julián na esquina do prédio dele e prosseguíamos para o teu, que agora era o nosso. E quando ficamos sozinhos você segurou meu rosto para que eu me virasse e te olhasse. Para que você pudesse me olhar. Teus olhos não percebiam nada de extraordinário, não viam o que havia atrás de minhas pupilas. Foi muito? Muito mais do que antes, falei, sombria, mas talvez amanhã. Amanhã você vai estar melhor. Mas amanhã já era hoje: só faltava clarear e as luzes mortiças serem eclipsadas pelo sol. Coroado com um turbante o turco parou de repente e escorregamos para frente. Não se mova, você disse, e depois senti a porta batendo, e você deve ter dado toda a volta para abri-la para mim, me dar a mão, me avisar que abaixasse a cabeça. Vendo-nos de longe, qualquer um diria que estávamos saindo de outro século, não de um carro. Descemos da máquina do tempo de braços dados e assim subimos a escadaria até o elevador e os cinco andares. Assim avançamos pelo corredor até o tilintar das chaves na fechadura. O ar parado do apartamento nos recebeu. O calor veio de todos os cantos, do chão sem tapetes, das paredes completamente nuas, das infinitas caixas que pareciam cheias de carvão em brasa em vez de livros. Havia dias que empacotávamos as coisas para uma mudança iminente. Por um corredor segui direto para o quarto, você entrou atrás: cuidado, deixei um copo d’água aqui pra você. E nos jogamos na cama e nos abraçamos apesar da umidade e, ungidos de suor, adormecemos. E na manhã seguinte você levantou as persianas e sentou na minha frente esperando eu acordar, não sei se do meu sonho ou da minha vida. Mas eu estava insone havia horas, sem coragem de abrir os olhos. Lina? Levantei uma pálpebra, depois a outra, e para meu espanto havia luz, um pouco de luz, luz suficiente: a sombra sanguinolenta não tinha desaparecido do olho direito, mas a do esquerdo se precipitara para o fundo. Eu só estava meio cega. E por isso aceitei teu café e o levei à boca sem hesitar, por isso até sorri, porque, apesar de tudo. E você estava ali, como outro caolho, sem entender o que tinha acontecido. Não podia calcular a gravidade. Não se animava a fazer todas as perguntas. Guardava-as para si, amarrotadas, como agora, nos bolsos.)


  • Um depoimento sobre o ensaio “Contra os filhos” (2014):
Lina Meruane




  • O conto “Amor”, de Clarice Lispector.

À leitura!

Daniel Munduruku + São Paulo = ancestralidade e literatura

Daniel Munduruku é um escritor brasileiro pertencente à etnia indígena munduruku. Nascido no Pará, fez os cursos de mestrado e de doutorado na cidade de São Paulo, cidade que pretendeu homenagear, em 2017, quando ela completava 463 anos. Na ocasião, Daniel se filmou lendo o prefácio de seu livro “Crônicas de São Paulo: Um olhar indígena”, publicado pela editora Callis, em 2004. Nesta publicação, o escritor trata de alguns bairros da cidade que possuem nomes indígenas, regiões por onde já perambulou e das quais se aproximou mais via pesquisa. Nesse processo, Daniel aproveitou para refletir sobre seu próprio lugar em São Paulo ao mesmo tempo em que procurou estar em sintonia com ancestrais paulistanos.

Cristina Bailey e Regina Zilberman, entrevistando Daniel em 2010, partem de uma referência a “Crônicas de São Paulo […]” para perguntar a ele “de que modo ‘um olhar indígena’ sobre a realidade difere de um olhar ‘negro’ ou [de] um olhar ‘branco’?” A entrevista merece ser lida por todos que desejarem se familiarizar, ainda que de forma sucinta, com o modo como o escritor percebia a si e a elementos da sociedade brasileira na época. Os interessados em questões migratórias se atentarão, por exemplo, a sua menção a Eliane Potiguara, a quem reconhece “pela coragem que sempre teve ao escrever sobre a diáspora indígena, sobretudo dos indígenas nordestinos”. (Para outras indicações de textos produzidos por ou sobre indígenas, parece viável recorrer à seleção feita por Janice Cristine Thiél a pedido da Carta Educação.)


Abaixo, seguem dois textos de Munduruku, uma crônica do livro “Crônicas de São Paulo: Um olhar indígena”, por meio do qual a cidade de São Paulo é lida por alguém que passa a habitá-la, no processo estabelecendo conexões, identificando similaridades e diferenças, quiçá, complementaridades. E, na sequência, um texto publicado no blogue do escritor, em que ele lida com as ideias de pertencimento e de identidade e nos indica as expressões mais adequadas para fazermos referência aos originários do Brasil.

Desejamos a todos uma boa leitura! E não se esqueçam de compartilhar este post com os amigos, de perto ou de longe!

Tatuapé – o caminho do tatu

Uma das mais intrigantes invenções humanas é o metrô. Não digo que seja intrigante para o homem comum, acostumado com os avanços tecnológicos. Penso no homem da floresta, acostumado com o silêncio da mata, com o canto dos pássaros ou com a paciência constante do rio que segue seu fluxo rumo ao mar. Penso nos povos da floresta.

Os índios sempre ficam encantados com a agilidade do grande tatu metálico. Lembro de mim mesmo quando cheguei a São Paulo. Ficava muito tempo atrás desse tatu, apenas para observar o caminho que ele fazia.

O tatu da floresta tem uma característica muito interessante: ele corre para sua toca quando se vê acuado pelos seus predadores. É uma forma de escapar ao ataque deles. Mas isso é o instinto de sobrevivência. Quem vive na mata sabe bem lá dentro de si, que não se pode permitir andar desatento, pois corre um sério perigo de não ter amanhã.

O tatu metálico da cidade não tem este medo. É ele que faz o seu caminho, mostra a direção, rasga os trilhos como quem desbrava. É ele que segue levando pessoas para os seus destinos. Alguns sofrem com a sua chegada, outros sofrem com sua partida.

Voltei a pensar no tatu da floresta, que desconhece o próprio destino, mas sabe aonde quer chegar. Pensei também no tempo de antigamente, quando o Tatuapé era um lugar de caça ao tatu. Índios caçadores entravam em sua mata apenas para saber onde estavam as pegadas do animal. Depois eles ficavam à espreita daquele parente, aguardando pacientemente sua manifestação. Nessa hora – quando o tatu saía da toca – eles o pegavam e faziam um suculento assado que iria alimentar os famintos caçadores.

Voltei a pensar no tatu da cidade, que não pode servir de alimento, mas é usando como transporte para a maioria das pessoas poder encontrar seu próprio alimento. Andando no metrô que seguia rumo ao Tatuapé, fiquei mirando os prédios que ele cortava como se fossem árvores gigantes de concreto. Naquele itinerário eu ia buscando algum resquício das antigas civilizações que habitaram aquele vale. Encontrei apenas urubus que sobrevoavam o trem que, por sua vez, cortava o coração da Mãe Terra como uma lâmina afiada. Vi pombos e pombas voando livremente entre as estações. Vi um gavião que voava indiferente por entre os prédios. Não vi nenhum tatu e isso me fez sentir saudades de um tempo em que a natureza imperava nesse pedaço de São Paulo habitado por índios Puris. Senti saudade de um ontem impossível de se tornar hoje novamente.

Pensando nisso deixei o trem me levar entre Itaquera e o Anhangabaú. Precisava levar minha alma ao princípio de tudo.

A crônica em questão foi divulgada nos sites de Ailton Krenak e de Margarida Caetano.


Usando a palavra certa pra doutor não reclamar

Na reflexão anterior falei sobre os equívocos que cercam a palavra índio. Fiz uma provocação e tenho certeza que muitas pessoas, especialmente professores, ficaram com a “pulga atrás da orelha”. Se assim aconteceu, alcancei meu objetivo. A inquietação é já um princípio de mudança. Ficar incomodado com os saberes engessados em nossa mente ao longo dos séculos é uma atitude sábia de quem se percebe parte do todo.

É sabido que esta palavra tem, às vezes, um quê de inocência em quem a usa. Tem quem a utiliza conscientemente também. Sabe que se trata de uma atitude política e fica mais fácil para os interlocutores entenderem do que estão falando. Aliás, esta palavra foi devidamente utilizada pelo movimento indígena no início dos anos 1970. Foi uma forma de mostrar consciência étnica. Antes disso não havia uma consciência pan-indígena por parte dos povos nativos. Eram grupos isolados em suas demandas políticas e sociais. Cada grupo lutava por suas próprias necessidades de sobrevivência. Somente depois que começaram a encontrar os outros grupos durante as famosas assembléias indígenas – patrocinadas pela Igreja católica, através do recém criado Conselho Indigenista Missionário – CIMI – é que as lideranças passaram a ter clareza de que se tratavam de problemas comuns a todos os grupos. A partir disso o termo índio passou a ter uma ressignificação política interessante. Notem, no entanto, que foi um termo usado na relação política com o estado brasileiro. Cada grupo continuou a se chamar pela própria denominação tradicional. Isso não significou abrir mão do jeito próprio de se chamar. Quando muito, chamavam para (sic.) os outros grupos ou pessoas indígenas utilizando o termo parente.

Aqui caberia outra reflexão que deverá vir brevemente. No entanto, devo deixar claro que o termo parente é usado pelos indígenas para todos os seres (vivos ou não-vivos). Chamar alguém de parente é colocá-lo numa rede de relações que se confunde com a própria compreensão cosmológica ancestral. Mesmo na língua portuguesa podemos observar que se trata de uma palavra que une concepções (par+ente) que denota um envolvimento que permite compreendermos que dois ou mais seres se juntam numa rede consangüínea. Do ponto de vista indígena isso vai além da consaguinidade e se insere numa cosmologia cuja crença coloca todos os seres (entes) numa teia de relações. Somente neste contexto é possível compreender a intrínseca relação dos indígenas com a natureza. Isso é, no entanto, assunto para outra conversa.

Até aqui tenho usado outra palavra para referir-me aos povos ancestrais. Ora eu uso nativo, ora indígena. Qual seria a certa? Ambas estão correta (sic.) para referir-se a uma pessoa pertencente ao um
(sic.) povo ancestral. Por incrível que possa parecer não há relação direta entre as palavras índio e indígena, embora o senso comum tenha sempre nos levado a crer nisso. Basta um olhadela (sic.) num bom dicionário que logo se perceberá que há variações em uma e noutra palavra. No duro mesmo os dicionários têm alguma dificuldade em definir com precisão o que seria o termo índio. Quando muito dizem que é como foram chamados os primeiros habitantes do Brasil. Isso, no entanto, não é uma definição é um apelido e apelido é o que se dá para quem parece ser diferente de nós ou ter alguma deficiência que achamos que não temos. Por este caminho veremos que não há conceitos relativo (sic.) ao termo índio, apenas preconceito: selvagem, atrasado, preguiçoso, canibal, estorvo, bugre são alguns deles. E foram estas visões equivocadas que chegaram aos nossos dias com a força da palavra.

Por outro lado o termo indígena significa “aquele que pertence ao lugar”, “originário”, “original do lugar”. Se pode notar, assim, que é muito mais interessante reportar-se a alguém que vem de um povo ancestral pelo termo indígena que índio (sic.). Neste sentido eu sou um indígena Munduruku e com isso quero afirmar meu pertencimento a uma tradição específica com todo o lado positivo e o negativo que essa tradição carrega e deixar claro que a generalização é uma forma grotesca de chamar alguém, pois empobrece a experiência de humanidade que o grupo fez e faz. É desqualificar o modus vivendis dos povos indígenas e isso não é justo e saudável.

Outra palavrinha traiçoeira e corriqueiramente usada para identificar os povos indígenas é tribo. É comum as pessoas me abordarem com a pergunta: qual é sua tribo? Normalmente fico sem jeito e acabo respondendo da maneira tradicional sem muita explicação. Sei que é um conceito entrevado na mente das pessoas e que só vai sair mediante muita explicação por muito tempo.

Afinal, o que tem de errado com a palavra? A antiga ideia de que nossos povos são dependentes de um Povo maior. A palavra tribo está inserida na compreensão de que somos pequenos grupos incapazes de viver sem a intervenção do estado. Ser tribo é estar sob o domínio de um senhor ao qual se deve reverenciar. Observem que essa é a lógica colonial, a lógica do poder, a lógica da dominação. É, portanto, um tratamento jocoso para tão gloriosos povos que deveriam ser tratados com status de nações uma vez que têm autonomia suficiente para viver de forma independente do estado brasileiro. É claro que não é isso que se deseja, mas seria fundamental que ao menos fossem tratados com garbo.

Se não pode chamá-los de tribo, como chamá-los? Povo. É assim que se deveria tratá-los. Um povo tem como característica sua independência política, religiosa, econômica e cultural. Nossa gente indígena tem isso de sobra e ainda que estejamos vivendo “à beira do abismo” trazido pelo contato, podemos afirmar com convicção que somos povos íntegros em sua composição e queremos estar a serviço do Brasil.

Uma última palavra: são os “índios”, brasileiros? Que tal desentortar o pensamento e inverter a pergunta: serão os brasileiros, “índios”? Será que a ordem dos fatores irá alterar o produto? Não saberia dizer, mas o que observo é que há um abismo entre o ser e o não-ser ou entre o não-ser e o ser. Nesse duelo, os indígenas têm levado a pior.

Texto nº 3 (três) da série Mundurukando.

Observações: 1) Trechos em itálico, grifos de Daniel Munduruku; trechos em negrito, grifos nossos. 2) Transcrevemos o artigo da forma como foi publicado no blogue do escritor.


Cabeçalho do blogue do escritor

“Max Loves Cupcakes”, livro de Ligia Carvalho

Ligia Carvalho faz parte do grupo de brasileiros emigrados. Ela se estabeleceu no Canadá e vive na cidade de Woodstock, em New Brunswick.

Ligia Carvalho

Mãe de três meninos, projetou parte de suas experiências na cozinha, cozinhando com seus filhos, no livro “MaxLoves Cupcakes”, publicado em 2017. Ligia quis oferecer a seus leitores uma narrativa que incorpora não só um apreço pelo convívio familiar, mas ainda uma preocupação com noções de segurança que devem ser observadas quando crianças participam do preparo de alimentos.

Livro infantil

Informações adicionais sobre a autora podem ser encontradas em uma entrevista que ela concedeu ao Brazilian Wave, disponível a seguir:  

Entrevista com Ligia Carvalho, por Brazilian Wave

Por meio de seu site pessoal, Lígia vende o livro em questão.

Dados quantitativos sobre a emigração brasileira podem ser encontrados nestes gráficos do Nexo, ao mesmo tempo em que este artigo de Helion Póvoa Neto procura dar conta de como a emigração brasileira tem sido retratada pela imprensa. A conferir.

Mayando in Adsamo, poema de Irene Marques (2012)

In the eyes of the neighbours she was a saint
who did not fear earthy ways
or slow down during the rains
she would travel long distances
only to meet floral incantations
and bring them to the starving

In the eyes of the people
she possessed the ways of the world
and the collars of the winters
the trees of the Himalayas
the carnations Of Singapore
the lilies of Senegal
the cedars of Andaluzia
the jasmine of Mongolia

In the eyes of the peasants
she came back every year
to adorn their lonely souls
and bring the adoring smells of fresh life

Every year
Mayando in Adsamo

Este poema faz parte do livro The Perfect Unravelling of the Spirit (2012), de Irene Marques, que nasceu em Portugal e hoje vive no Canadá.

The The Perfect Unravelling of the Spirit (2012), de Irene Marques

Irene é autora de textos literários e acadêmicos e leciona na Universidade de Toronto. Enquanto pesquisadora, Irene promove uma interessante discussão sobre a literatura produzida por migrantes em face do cânone literário canadense. Trata-se de refletir sobre como esse cânone se vê permeado por uma ética que admite migrantes como produtores de textos literários, enquanto ainda se esquiva das várias estéticas que esses indivíduos trazem consigo de seus locais de origem. Vale a pena ler a respeito nesta entrevista da autora dividida em três páginas: (1), (2) e (3), em que ela também comenta sobre seu processo de escrita de textos em português, sua língua materna, e em inglês, uma das línguas faladas no país para onde emigrou.

Irene Marques

“I knew ever since I learned how to read and write in that primary school of Beira Alta, with only one room for all the grades, that words and language were my beautiful home.”

Nadine Gordimer em entrevistas

Nadine Gordimer nasceu na África do Sul, onde continuou vivendo, em uma luta contra o regime segregacionista do Apartheid e seus lastros. Desse lugar, nutria sua criatividade, ao mesmo tempo em que se posicionava pelos escritores africanos silenciados. Sua mãe era londrina, seu pai, lituano. Seu marido Reinhold Cassirer foi um refugiado da Alemanha nazista. Sua filha se estabeleceu na França e, seu filho, nos Estados Unidos (Wästberg, 2001).

Neste momento preparatório para nossa conversa sobre seu romance “O engate”, que tal dar uma espreitada em entrevistas que concedeu? Listamos algumas a seguir e, no final, um ensaio de sua autoria.

(1) “Cada escritor ilumina um pouco o mundo.”

“Como é discutir seu trabalho em público, em festivais literários como este?

Nunca falo sobre as coisas que escrevo, a não ser que façam uma pergunta específica. O melhor dos escritores está no que eles escrevem, nos livros. É melhor ler os livros e não encontrar o autor (risos). Em geral falo sobre como comecei, o que faz um escritor, esse tipo de coisa. Mas descrever meu próprio trabalho… Está tudo lá, nos livros.”

 (2) “Mi escritura nunca fue un grito contra el racismo. Eso lo hice con mis acciones.”

“¿Es esa capacidad para llegar hasta lo más hondo de otros seres humanos lo más maravilloso de la literatura?

Todo surge de la creación del personaje. Los escritores somos excepcionalmente observadores, en eso somos un poco como los niños. Nosotros no nos fijamos sólo en lo que se está diciendo, también observamos el lenguaje corporal. Y todo eso lo utilizamos para crear a personajes que respiran vida. Toda escritura es un viaje de descubrimiento. Estamos investigando en las vidas de distintas personas, en distintas circunstancias y edades. Es un viaje al misterio de lo humano. Es lo que encuentras en los grandes autores, los que me han iluminado, de Tolstoi a Shakespeare o Proust.”

 (3) Nombrar lo innombrable.

“Salman Rushdie dijo en una ocasión: “Un novelista existe para decir lo indecible, para expresar lo innombrable”. Creo que eso describe, de una manera hermosa, exactamente lo que siento. A menudo me pregunto cómo entrar en personajes completamente distintos a mí. Yo no tengo religión, soy atea, pero hay escritores a quienes admiro que son de una religiosidade profunda y me pregunto cómo se plantean la vida, ya que yo no tengo explicaciones para los misterios y ellos sí las tienen.”

 (4) Nobel de 1991, Nadine Gordimer investe contra o governo de seu país.

“Seu trabalho atual se notabiliza principalmente pelo combate à censura em seu país.

Sim, ainda corremos o risco da mordaça, pois agora, a comissão que avalia a mídia ameaça voltar. Escrever pressupõe uma interação com os leitores. Se o trabalho e a liberdade do escritor estão em risco, a liberdade de cada leitor também está ameaçada. Depois de lutar tantos anos contra o apartheid, período em que vi pessoas morrendo pela causa da liberdade, não imaginava que fosse preciso lutar novamente contra o governo.

Como a senhora define seu engajamento?

Bem, sou uma escritora, portanto, a liberdade de expressão é primordial para minha atividade. Acredito na existência de duas bases para a liberdade. Uma é a de se poder votar à sua escolha e outra é a liberdade para se dizer o que pensa, seja a imprensa, seja o cidadão comum. Isso pode parecer um tanto óbvio para você, mas, acredite, é uma conquista para meu país.”

 (5) “Llegué a sentir que no hacía lo suficiente.”

“¿Nunca pensó en marcharse, como Coetzee, el otro Nobel?

Durante la lucha contra el ‘apartheid’ hubo momentos en los que llegué a sentir que no hacía lo suficiente. Además, prohibieron tres de mis libros y hubo otras cosas de las que no quiero hablar…

¿Recibió amenazas?

Digamos que mi marido y yo corrimos muchos riesgos. No vivíamos la vida de los blancos. Infringíamos la ley continuamente. Nuestra casa estaba llena de gentes de todos los colores. Escondimos a muchos…

¿Por qué no quiere hablar de todo esto?

Porque otras personas sacrificaron mucho más que nosotros. Tengo amigos cuyas familias quedaron rotas. Gente que se consumió en la cárcel. Yo creo que un verdadero revolucionario deja a un lado su vida, por completo, y yo no lo hice. Acepté las limitaciones. Pero creo que me gané el derecho de ser africana. Y cuando votamos en 1994 todos juntos, blancos y negros, lo sentí como un triunfo.”

(6) “Escribes para quien te quiera leer, no importa dónde este”.

“¿Después de ganar premios, entre ellos el Nobel, y de su labor como activista, qué me dice del éxito?

Conocer el éxito como escritor está bien, pero existen otras responsabilidades como ser humano. Puedes tener éxito en tu profesión pero tener problemas con tu familia o tus hijos. En mi caso, me casé con un hombre maravilloso, que me dio libertad para escribir. Es como tener dos vidas: la responsabilidad familiar y cívica; y la responsabilidad profesional o laboral. El Premio Nobel está bien, desde luego el dinero ayuda, pero hay otras cosas.”

(7) Crítica Literária

“Sim, considero os críticos úteis, mas você tem que se lembrar que eles estão sempre atrasados em relação aos fatos, não? Porque aí a obra já está feita. E o momento em que você descobre que concorda com eles é quando eles chegam às mesmas conclusões que você. Em outras palavras, se um crítico discorda de alguma coisa que eu sei no meu entendimento que está certa, que fiz o melhor que pude e que está bem feita, não sou afetada pelo fato de que alguém não gostou. Mas se tenho dúvidas quanto a uma personagem ou alguma coisa que fiz e essas dúvidas são confirmadas por um crítico, então sinto que as minhas dúvidas se confirmaram e estou pronta a respeitar as objeções daquele crítico… É claro que isso depende muitíssimo do crítico. Há uma ou duas pessoas, que não são críticos de profissão, a quem eu dou meus livros para ler, até mesmo em manuscrito. Fico doente de apreensão enquanto o estão lendo. E certamente há determinados críticos que me atingiriam profundamente se dissessem: ‘Bom, este aqui é uma porcaria’. Mas isso ainda não ocorreu”.

  

nadine gordimer - foto - cia das letras

 

Ensaio. The Essential Gesture: Writers and Responsibility. The Tanner Lectures On Human Values, Delivered at The University of Michigan, October 12, 1984.

“Responsibility is what awaits outside the Eden of Creativity.”

 

Lembrando que discutiremos o romance “O engate”, de Nadine Gordimer, no dia 25 de agosto de 2018, aqui. Até lá!