Sonho africano, de Francisca Júlia

Ei-lo em sua choupana. A lâmpada, suspensa
ao teto, oscila; a um canto, um velho e ervado fimbo.
Entrando, porta dentro, o sol forma-lhe um nimbo
cor de cinábrio em torno à carapinha densa.

Estira-se ao chão… tanta fadiga e doença!
Espreguiça e boceja… o apagado cachimbo
na boca, nessa meia escuridão de limbo,
mole, semicerrando os dúbios olhos, pensa…

pensa na longe pátria… as florestas gigantes
se estendem sob o azul, onde, cheios de mágoa,
vivem negros pituns e enormes elefantes…

calma em tudo. Dardeja o sol raios tranquilos…
desce um rio, a cantar… coalham-se à tona d’água,
em compacto apertão, os velhos crocodilos…

Francisca Júlia (1871-1920) é uma escritora cuja produção poética alinha-se com o Parnasianismo e com o Simbolismo brasileiros. Discriminada e exaltada na época em que escrevia, merece ser redescoberta pelas editoras de livros didáticos, algumas das quais tendem a lhe conceder um espaço secundário em suas publicações que enfocam a produção literária brasileira do final do século XIX.

O poema “Sonho africano” aparece com sua ortografia atualizada em alguns sites. Em alguns, inclusive, o termo “pituns”, que aparece no 11º verso do poema, foi trocado pelo vocábulo “répteis”. Considerando que o substantivo mágoa foi então grafado pela escritora como “magua” (10º verso do poema) e que a atualização ortográfica do termo “pituns” pode, quem sabe, ter seguido o mesmo padrão, convertendo-se em “pítons”, chegamos a um termo que designa alguém que faz profecias, um adivinho, digamos assim. Logo, nos deparamos com duas versões do mesmo verso, as quais apontam para imagens bem diferentes:

  • “[Na longe pátria, onde] Vivem negros répteis”
  • “[Na longe pátria, onde] Vivem negros adivinhos”

Um filólogo ou linguísta, possivelmente, poderá nos explicar como a expressão eleita pela escritora, isto é “pituns”, vem se alterando e, inclusive, o que sustenta a divulgação do poema atualmente com o termo “répteis” em seu lugar. Até que este mistério seja desvendado, cabe ao leitor de Júlia manter esses cenários em perspectiva, especialmente por sabermos do zelo envidado pelos parnasianos no processo de descrição de imagens.

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